O resumo do melhor cinema que vimos este ano tem uma presença forte do cinema ibérico. O regresso do mestre espanhol Víctor Erice, através de “Fechar os Olhos”; um novo olhar sobre os locais onde foi rodado o marcante “Os Verdes Anos”, agora pela lente de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata; uma história real passada na Galiza e recontada por Rodrigo Sorogyen; o díptico de João Canijo que tanto revela as mulheres que gerem um hotel como olha para as vidas dos hóspedes que por lá passam; e a curta de animação que colocou Portugal no mapa dos Óscares. Na produçáo anglo-saxónica destacam-se dois filmes biográficos, uma primeira obra brilhante e a história real e perturbadora de um amor ilegal. Esta seleção de dez filmes completa-se com a controversa e incisiva obra da veterana polaca Agnieszka Holland que mostra o drama dos migrantes nas fronteiras do leste europeu.
“Ice Merchants”
Realização: João Gonzalez
Numa escarpa numa montanha, um homem e o seu filho vivem do gelo que retiram das altitudes e que vendem na aldeia. “Ice Merchants” é a terceira curta de animação da carreira de João Gonzalez. Um filme que começa por se manifestar numa dimensão de sonho para só depois ser conduzido pelo trabalho do jovem realizador a uma visão poética sobre ligações familiares com a natureza à nossa volta em permanente e perigosa mudança… Um dos momentos belos do cinema português em 2023 e primeira nomeação para os Óscares.
“Fechar os Olhos”
Realização: Victor Erice
O cineasta espanhol Victor Érice não filmava há três décadas, desde ”O Sol do Marmeleiro”, e regressou com uma narrativa misteriosa sobre um ator desaparecido durante largos anos. “Fechar os Olhos” é uma ficção com dimensão autobiográfica, como explicou o realizador em Lisboa, numa conversa com o público, ainda antes de receber o prémio de melhor filme do LEFFEST – Lisboa Film Festival. “Este projeto, esteve sempre a gravitar, devido à minha experiência pessoal de ser um realizador que não conseguiu acabar um filme, porque rodei o “Sul” em 1983 que considero ser uma obra inacabada. Portanto, o eco dessa experiência ficou em mim porque eu sempre vivi o cinema como um facto existencial.” Nomeado para 11 Goyas da academia espanhola de cinema, “Fechar os Olhos” marca o regresso de um cineasta que entende os filmes de forma especial, e que quis fazer um hino ao cinema.
“As Bestas”
Realização: Rodrigo Sorogoyen
O universo rural é o cenário para explorar o confronto de dois modos de vida. Um casal de franceses muda-se para o campo seduzido pela vida saudável e sustentável, mas é constantemente desprezado e provocado por alguns dos habitantes locais, inconformados com o fato dos franceses terem recusado a instalação de eólicas. “As Bestas” assemelha-se a um thriller e a um western, é inspirado numa história real galega, mas Rodrigo Sorogoyen acredita que podia passar-se em muitos outros lugares. “Estamos a falar do conceito de justiça, de estrangeiros, de xenofobia, mas também de uma história de amor. Para mim é uma história bonita sobre como a tragédia não se sobrepõe ao amor, porque há uma mulher que honra a memória do seu amor, do seu marido. Falamos de muitas coisas, não estamos a falar da Galiza.” O filme foi consagrado em 2022 pela academia de cinema espanhola com 9 prémios Goya e um total de 17 nomeações e foi também distinguido com o César de melhor filme estrangeiro em França.
“Mal Viver/Viver Mal”
Realização: João Canijo
Um hotel em Ofir foi o cenário escolhido por João Canijo para a rodagem de dois filmes em simultâneo, e que funcionam em espelho. “Mal Viver” revela as mulheres da mesma família que gerem o hotel. Em “Viver Mal”, as atenções voltam-se para os hóspedes. Os dois filmes desenrolam-se em conjunto, mas de forma separada. São em simultâneo o primeiro plano e o pano de fundo. Nos dois, o realizador explora a ideia de mulheres incapazes de amar. “Mal Viver” recebeu o prémio de melhor realizador no Festival de Berlim.
“Onde Fica esta Ria? ou Sem Antes nem Depois”
Realização: João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata
Sessenta anos após “Os Verdes Anos”, João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata filmaram os mesmos lugares onde Paulo Rocha contou a história de Ilda e Júlio, os jovens que se conhecem numa Lisboa que na época nunca tinha sido vista assim em cinema. A rodagem começou ainda em 2019 e prolongou-se durante a pandemia. Uma cidade sem as habituais narrativas serviu, na perfeição, o filme documental sem história, que os realizadores se propuseram fazer. Isabel Ruth, a atriz que foi Ilda em “Os Verdes Anos”, volta ao ecrã para ser a estrela de “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois”.
“Oppenheimer”
Realização: Christopher Nolan
A biografia de Robert Oppenheimer, foi filmada por Christopher Nolan com as regras do thriller, num filme que mostra o nascimento da era nuclear. “Oppenheimer” foca-se no projeto Manhattan e nos testes que levaram ao bombardeamento das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Numa entrevista à Associated Press, Christopher Nolan admite que filmar um momento tão delicado da história, implicou ser o mais fiel possível aos acontecimentos. “Estamos a lidar com a história mais séria que é possível imaginar. São acontecimentos muito dramáticos que mudaram e definiram o mundo em que vivemos hoje. Por isso, não queríamos comprometer nada. E simplesmente confiar que o cinema consegue dar forma a este tipo de história de grande escala. Esse era o nosso compromisso.” “Oppenheimer” revelou-se esmagador em sala IMAX, onde registou ótimos resultados, e foi o trunfo do estúdio Universal para levar público às salas com ambição assumida de conquistar nomeações para os Óscares.
“Maestro”
Realização: Bradley Cooper
Bradley Cooper, ator e realizador, há muito que se imaginava a dirigir uma orquestra como Leonard Bernstein fazia de forma eloquente. Quando Steven Spielberg o convidou para realizar “Maestro”, percebeu que tinha de avançar. “Finalmente, depois de 27 anos nesta área, encontrei algo que faz sentido para mim, que é dirigir e interpretar um filme. Tenho esta obsessão em conduzir uma orquestra imaginária desde há muitos anos.” Bradley Cooper impressiona no desempenho energético e confirma-se como um realizador magistral. “Maestro” foge à tradicional biografia para se tornar num retrato íntimo de uma figura marcante da música no século XX, expandindo a relação entre Bernstein e a mulher Felicia Montealegre, interpretada por Carey Mulligan.
“Green Border – Zona de Exclusão”
Realização: Agnieszka Holland
Filmado a preto e branco e num registo que parece documental, “Green Border – Zona de Exclusão” denuncia as dificuldades enfrentadas pelos refugiados que tentam chegar à Europa, em particular a crise que ainda hoje acontece na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia. Agnieszka Holland quis dramatizar um problema real, em várias dimensões, através das famílias de refugiados, dos guardas fronteiriços e dos ativistas que tentam ajudar. “Acho que a crise dos migrantes e refugiados vai mudar o futuro da Europa.” Em 2021, perante a chegada massiva de refugiados, foi criada uma zona de exclusão inacessível. Através do cinema, Agnieszka Holland conseguiu abordar este problema. “Era impossível os documentaristas e jornalistas irem à zona de exclusão. Mas nós podíamos fazer uma coisa que eu sei fazer, uma ficção sobre coisas que ainda estão a acontecer nesta altura.” O filme recebeu o prémio especial do júri no Festival de Veneza 2023.
“Aftersun”
Realização: Charlotte Wells
A estreia em longa-metragem da realizadora escocesa Charlotte Wells é uma das revelações de 2023. Sophie, já adulta, recorda umas férias da infância, quando tinha 11 anos, partilhadas com o pai recém-divorciado. Numa conversa promovida pela Academia de Cinema norte-americana, a realizadora esclareceu o lado pessoal de “Aftersun” ao referir que “as emoções expressas no filme são as minhas e isso é o que o torna tão pessoal. Não tive exatamente as férias que aparecem no filme, mas a minha relação com o meu pai, foi a base para criar as personagens. Por isso, há muito de mim no filme.” “Aftersun” confirma como uma história simples, pode ser totalmente arrebatadora. Amplamente premiado, foi o grande vencedor da gala anual do cinema independente britânico.
“May December — Segredos de um Escândalo”
Realização: Todd Haynes
A história real chocou a América na década de noventa do século passado: uma mulher mais velha cumpriu pena de prisão por engravidar de um rapaz de 13 anos. Todd Haynes ficciona a relação dos dois, 20 anos depois, quando uma atriz se propõe contar a história deles em filme. “Isto é muito complicado, pelo facto da relação ter durado. Eles ultrapassaram o escândalo, a diferença de idade e o tempo de prisão. E criaram três filhos. Há disparidade de idades em todo o tipo de relações. E há transgressões que fazem parte das nossas vidas. Mas que representam oportunidades para olharmos para nós próprios e para a cultura em que vivemos. Às vezes encontramos disparidades entre os nossos desejos e o que nos rodeia. Acho que em alguns dos meus filmes, isso tem sido um tema recorrente.” “May December – Segredos de um Escândalo” encena um triângulo amoroso fora do comum que vive de um permanente jogo de espelhos, entre as personagens, quem as rodeia e quem as vê na sala de cinema.