A herança de Pier Paolo Pasolini continua bem viva. A passagem do centenário do seu nascimento, a 5 de março de 1922, em Bolonha, foi pretexto para muitas iniciativas e edições que se prolongaram pelo ano de 2023. De facto, o seu desaparecimento prematuro — foi assassinado a 2 de novembro de 1975, em Ostia, nos arredores de Roma — não impediu que o seu legado persista como um universo criativo capaz de desafiar ideias feitas e, em particular, os modos correntes como contamos a nossa história social e política.
Agora, no mercado português, duas edições podem ajudar a situar o seu trabalho — são elas uma caixa de DVD (ed. Risi Film) com seis títulos da década de 60, da sua primeira longa-metragem, “Accattone” (1961), até “Rei Édipo” (1967), e o livro “A Longa Estrada de Areia” (Edições do Saguão).
Há uma ligação prática e simbólica entre o livro editado e um dos filmes em DVD, “Comícios de Amor” (1964), que merece ser sublinhada. Assim, “A Longa Estrada de Areia” pode ser resumido como uma colecção de pequenos textos resultantes de uma deambulação por várias zonas de Itália, fazendo um inventário de formas de vida, relações humanas, ideias e desejos para o futuro. “Comícios de Amor” como que refaz em cinema essa deambulação, agora com Pasolini a conversar com pessoas anónimas, também de diversas regiões do país, tentando perceber como é que entendem o amor e o sexo.
No fundo, este método de trabalho e investigação não é estranho aos seus primeiros filmes, nomeadamente o já citado “Accattone” e “Mamma Roma” (1962). Ambos mergulham no mapa grandioso e multifacetado da região de Roma para retratar personagens pouco comuns no cinema italiano da época, o primeiro revelando Franco Citti, um dos actores “fetiche” da obra de Pasolini, o segundo centrando-se numa admirável composição de Anna Magnani.
A preocupação de “virar” a câmara para as personagens do povo representava, afinal, uma variação sobre a herança dos autores neo-realistas, a começar, claro por Roberto Rossellini (1906-1977). Não que Pasolini tentasse “imitar” tais autores. Tratava-se, isso sim, de reafirmar o impulso realista para dar conta das alegrias e sofrimentos, da vida e
da morte, de personagens que se inscreviam também numa tendência de algum cinema europeu da época, distanciando-se dos heróis e das narrativas da produção clássica.
É na sequência destes filmes que aparece “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964), algo como um “ensaio poético” que se demarca das representação tradicionais da vida de Jesus, por um lado recusando os dispositivos mais espectaculares dessas representações, por outro lado apostando na palavra (neste caso, do Evangelho) como elemento central da “mise en scène”.
Se nos lembrarmos que “Passarinhos e Passarões” (1966) está também na já citada edição em DVD, importa acrescentar que, na sua procura de linguagens despidas de retórica, alheias a estereótipos, Pasolini foi também um criador de géneros muito diversificados. Com o grande Totò (1898-1967) no papel central, “Passarinhos e Passarões” é um exemplo raro de comédia em que o realismo dos cenários se combina com o artifício das situações, dando origem a uma crónica social que tem também qualquer coisa de parábola política.
Aqui e agora, Pasolini é tudo o que se quiser, menos um criador encerrado num estatuto museológico mais ou menos simplista. A pluralidade do seu labor, como realizador de cinema, romancista, ensaísta e poeta, persiste para lá das épocas e das modas. Afinal de contas, podemos reconhecer-nos mais ou menos na sua obra, mas o desejo de liberdade criativa que dela emana é intemporal.
Texto de João Lopes
A caixa com os seis primeiros filmes de Pier Paolo Pasolini é um dos destaques no último episódio de “Duas ou Três Coisas”, com João Lopes e Nuno Galopim.