O menos que se pode dizer do filme “Anatomia de uma Queda”, da francesa Justine Triet, é que foi a grande surpresa da edição de 2023 do Festival de Cannes, acabando mesmo por arrebatar a Palma de Ouro. De facto, num certame em que passaram, por exemplo, títulos como “A Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer, “As Ervas Secas”, de Nuri Bilge Ceylan, ou “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders (para apenas citarmos alguns filmes já lançados nas salas portuguesas), “Anatomia de uma Queda” parecia ser “apenas” um típico drama de tribunal, condenado a ficar fora do palmarés…
Em boa verdade, não há nada de típico no filme de Triet, a começar pelo seu brilhante argumento, escrito pela realizadora com a colaboração do seu companheiro, Arthur Harari. Esta é a história de um casal em crise: a morte súbita do marido (na “queda” que o título refere) transforma a mulher, uma escritora de sucesso, na primeira e, afinal, única suspeita — Sandra Hüller é notável na composição dessa figura paradoxal, tão transparente quanto misteriosa. A partir daí, o espectador entra num labirinto de evidências e aparências que se vai transfigurando num subtil exercício moral sobre a inocência e a culpa.
Lembramo-nos de exemplos que são, por assim dizer, antepassados do filme de Triet: “O Caso Paradine” (1947), de Alfred Hitchcock, “Anatomia de um Crime” (1959), de Otto Preminger, “O Veredicto” (1982), de Sidney Lumet, etc. Seja como for, a sua herança não é, de modo algum, “copiada”, antes reinventada num universo dramático em que ecoam linhas temáticas do nosso tempo, das relações entre a vida vivida e a vida representada pelas narrativas artísticas, até ao lugar dos mais novos no interior das dinâmicas familiares — neste aspecto, o destaque vai para Milo Machado Graner, o jovem actor francês, de ascendência portuguesa, que interpreta o filho do casal.
Será que, através de tudo isto, “Anatomia de uma Queda” está na linha da frente para os Óscares de Hollywood (a atribuir no dia 10 de março)? As suas cinco nomeações — incluindo melhor filme, melhor realização e melhor actriz — estão longe de ser um dado banal, mas importa não esquecer que, de “Maestro” a “Oppenheimer”, a concorrência é fortíssima.
Há uma frase feita que, ainda assim, no caso de “Anatomia de uma Queda”, pode fazer todo o sentido: o reconhecimento artístico que tais nomeações traduzem envolve um importante valor simbólico, não apenas para Justine Triet, mas para o lugar da produção francesa no mapa global do cinema.
Texto de João Lopes
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