1.
Nas Lezírias, na fronteira do Ribatejo com o Alentejo, nasceu a história de uma mulher.
Chamava-se Nazaré e morreu há vinte anos.
Nasceu e partiu anónima, mas fica agora escrito que um dia uma neta, de nome Bárbara, professora de liceu, acreditou que eu a podia escrever.
Tentarei fazê-lo.
2.
Nazaré não sabia ler nem escrever.
Trabalhava no campo desde criança, as suas mãos eram grossas e papudas, mãos de lavoura.
Casou um dia, era obrigatório casar.
E calar.
Desse casamento nasceram nove filhos, mas os últimos foram sofridos. O marido batia-lhe e adormecia com uma faca debaixo da almofada, ameaçava-a de não ficar para contar a história se saísse da linha.
3.
Ela rezava para que o homem morresse, mas continuou a ter filhos – um atrás do outro.
O oitavo nasceu-lhe morto e ela ficou com ele deitado até ao nascer do Sol. Toda a noite a rezar para que Deus o encontrasse, para que não ficasse perdido entre mundos.
O último pariu-o com o homem a gritar pelo almoço. E ela, ainda com as pernas sujas de sangue, saiu da cama e foi acender a lareira.
A Nazaré ficou com uma parte da cara paralisada por causa desse parto sem tempo.
Mas nunca se esqueceu de rezar para que acontecesse o milagre.
E aconteceu.
Uma embolia fulminante matou o homem e ela libertou-se embora nunca tenha aprendido a sorrir sem medo de sorrir.
4.
Os filhos organizaram-se e foram saindo da aldeia.
Uns para uma cidade, outros para outra.
Nazaré criou alguns netos, não todos os que desejava porque as suas mãos não eram suficientemente macias.
Tinha rugas profundas, cozinhava à antiga, os seus sabores eram os sabores das nossas avós.
Foi por causa dela que Bárbara quis ser professora.
Um dia, ainda criança, comprou uma sebenta e tentou sem sucesso ensinar a avó a ler e a escrever.
Bárbara conseguiu apenas que ela escrevesse as suas iniciais NP – “viste filha, já consigo escrever Nazaré da Piedade, minha filha?”.
Esta é a história de uma neta professora.
Uma neta com saudades de uma avó que nunca ralhava, que nunca levantava a voz, que morreu aos 84 anos.
Uma neta que continua a ouvir os seus passos, a sua voz e o cheiro da comida.
Uma neta que sabe a sorte que tem.
E por isso a agradece todos os dias.
Texto e programa de Luís Osório
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