1.
Quando era pequena a avó dizia-lhe que ela não podia deixar de ser independente. Que não se atrevesse a deixar-se ficar num limbo, que nunca se menorizasse por ser mulher.
A avó materna tocava piano e falava francês.
Era inteligente, forte e dependente de um marido tão especial quanto ela.
A neta Ana nasceu em liberdade, largas semanas após o 25 de Abril de 1974.
Era a mais velha e os avós recebiam-na todos os dias na sua casa de Benfica.
2.
A pequena Ana cresceu amada e protegida.
O avô especial sentava-a no colo, lia-lhe “A Vida Soviética” e falava-lhe do que era o fascismo.
A neta achava-o um sábio.
E via a avó como um prolongamento da mãe, as duas absolutamente decididas e empenhadas no objetivo de oferecer à filha e neta um futuro sem medo.
3.
A pequena Ana ligou-se muito ao avô e o avô a ela.
Levava-a ao ténis.
Levava-a ao Benfica a ver os jogos e fazia-lhe a cabeça para não ser do Sporting como o pai.
Quando o avô adoeceu, quando deixou de ouvir numa surdez que lhe surgiu galopante, não fez disso drama, mas a neta, ainda sem idade para ir à escola, quis aprender a ler e escrever.
Com a Cartilha de João de Deus começou a juntar letras com letras, a formar palavras e a escrevê-las ao avô.
Palavras simples e definitivas de ternura, afeto e amor.
4.
A pequena Ana é hoje uma das mulheres mais poderosas em Portugal.
Presidente da Altice, empresa com milhões de clientes e quase sete mil trabalhadores na sua dependência.
E nunca se esqueceu dos dias em que os avós maternos lhe sorriam. Os dias em que ouvia histórias revolucionárias e o som do piano ao fundo. Os dias em que o seu velho sábio deixou de a poder ouvir, o dia em que ela lhe fez a surpresa escrevendo aos cinco anos palavras que o emocionaram.
E nunca desvalorizou os conselhos da avó e da mãe.
5.
Não te esqueças, Ana.
Não te esqueças de agarrar o mundo, de o fazer teu, não tenhas medo.
Ana Figueiredo fez-se ao mundo sem medo, foi para fora de pé, arriscou.
Trabalhou na Suíça, em Israel, França e Estados Unidos. Viveu quatro anos na República Dominicana onde, numa sociedade classista e misógina, presidiu à maior empresa de telecomunicações do país e fê-lo em plena pandemia.
Sim, Ana.
Se os seus avós não tivessem partido, se ainda cá estivessem, certamente que não teriam palavras para o tanto que agarrou e fez seu.
Para o tanto que agarraste e fizeste teu.