1.
Um dia perguntei a Jorge Silva Melo se não estava cansado de tanta luta, de tanta incompreensão, cansado de ser Quixote sem moinhos que se vissem.
Respondeu-me que sim…
… estava cansado e sentia-se a envelhecer, mas isso não era um móbil de desistência, pelo contrário, a luta tinha de continuar até por ser a essência dos Artistas Unidos.
O combate.
A coragem.
A juventude.
A revolução de pensamento.
O nascimento de novas palavras.
2.
O Jorge era duro e um chato.
Quando se aproximava os políticos fugiam, não estavam para o ouvir.
Um dia também lhe perguntei se não se cansava disso.
Se não se cansava de perder tempo com gente que, na maior parte dos casos, não fazia ideia de quem ele era, do que fizera, do papel que desempenhara na cultura portuguesa, no bem que escrevia e pensava, no seu contributo para a história do teatro português, até nos seus filmes.
3.
Os Artistas Unidos foram uma criação sua.
Nasceram há quase trinta anos e ocuparam um lugar que não existia antes.
Uma verdadeira escola de texto, de representação, de teatro.
Dezenas de atores, dramaturgos, encenadores ou cenógrafos começaram ali.
Dezenas de textos foram editados ou postos em cena apenas por que os Artistas Unidos lhes deram visibilidade.
4.
Às tantas, depois de terem sido mais uma vez despejados, a Reitoria da Universidade de Lisboa assinou um contrato que lhes permitiu usar as instalações na Rua da Escola Politécnica.
Pensei que a coisa ia estabilizar-se.
Quem melhor do que uma universidade para entender o valor da cultura? Sobretudo o valor de um projeto como aquele?
Mas o fundador não tinha ilusões, quando o tempo chegasse um qualquer reitor resgataria o espaço.
E resgatou.
Fê-lo no ano em que Jorge Silva Melo morreu.
Sem qualquer problema de consciência, afinal a lei era a lei.
5.
Os Artistas Unidos mantêm-se e apostam numa programação ambiciosa para o próximo ano, mas continuam sem qualquer garantia de que terão um espaço onde as suas coisas poderão descansar.
E eles também.
Porque a cultura não vale quase nada para os decisores políticos – à esquerda e à direita.
Se Luís Miguel Cintra e Cristina Reis tiveram de fechar as portas da Cornucópia por não terem recebido financiamento, o que esperar?
Talvez a sua essência seja a luta, como definiu Silva Melo.
Talvez seja o combate até ao último suspiro, mas já cansa.
Não é justo.
Porque os Artistas Unidos são únicos.
Como a Cornucópia era um espaço único.
Não há nenhum projeto que os substitua – e neste tempo de facas longas e encruzilhadas há que manter os moinhos que nos restam.
Nem que seja para que o espírito de Quixote não se apague numa fogueira que surpreenderia pela dimensão o próprio George Orwell.
Texto e programa de Luís Osório
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