1.
Caro José Cabrita Saraiva
Fui surpreendido com a morte do teu pai, não o sabia doente…
… devo dizer-te que não imaginava sequer que pudesse ficar doente, a imagem que tenho é a de um homem provocatoriamente vivo, provocatoriamente interessado em contaminar a realidade com uma visão diferente da verdade aceite pela maioria.
O teu pai era um homem alto e magro.
Percebi quando com ele trabalhei que eu próprio era mais alto, mas não parecia que o fosse.
Era sibilino e difícil – em alguns momentos passei um mau bocado quando estive nessa sua última redação, mas nunca consegui deixar de o ouvir e respeitar.
Sempre me manteve à distância e não desejava que eu o substituísse na direção do Sol – como fora definido pela administração. Pela minha parte nunca tive dúvidas acerca do que estava em jogo e ainda menos o condenei por defender à sua maneira o jornal que fundara.
Ganhou legitimamente essa batalha.
2.
Passaram uns vinte dias pela notícia da sua morte.
E quero dizer-te que o teu pai foi uma das pessoas mais marcantes que conheci – e uma das mais singulares figuras da história do jornalismo em democracia.
Era autocentrado, mas com uma visão coerente e livre.
Era reacionário e paradoxal.
Era culto, mas atraído pelo que o povo consumia.
Cultivava o estilo e a estética, os seus textos eram inconfundíveis.
Era arrogante, mas diplomata.
Picuinhas, mas bastas vezes genial.
Louco e pragmático, o que é uma contradição nos termos.
E quando subíamos ao seu gabinete tornava-se quase impossível interrompe-lo nos seus monólogos de que tenho saudades, monólogos em que aprendi bastante.
3.
O teu pai aproveitou a última crónica para voltar a lixar a cabeça aos jornalistas dizendo que nunca se assumiu ou viu como tal – curiosamente o mesmo exercício de Cavaco Silva em relação à política.
Mas era um jornalista.
Um dos melhores que conheci…
… apesar de não concordar com metade das suas opções, o que me levou à loucura naqueles noves meses em que fui diretor executivo do Sol totalmente esvaziado de poder.
No entanto, todas as opções iam ao encontro de uma lógica inquebrantável – e quem era eu para o colocar em causa, ele que foi diretor do Expresso 22 anos, o diretor com mais sucesso da história do jornal fundado por Pinto Balsemão.
4.
Tens orgulho no teu pai.
E toda a razão para isso.
Fiquei triste, confesso-te.
Faltam pessoas realmente livres e heterodoxas.
Que não pensem o que é politicamente correto, à esquerda e à direita – vemos na política, nos jornais e até na cultura gente a pensar basicamente o mesmo, sem rasgo, sem coragem e sem a arrogância de acreditar que têm um caminho próprio.
José António Saraiva tinha tudo isso.
Com ele morre certamente um tempo que talvez seja impossível de voltar.