O senhor Luís fez ontem 103 anos e a Junta de Freguesia de Priscos assinalou a data com cerimónia adequada, palavras celebrando vida tamanha, sorrisos e prendas. Na foto do jornal O Minho, Luís Ferreira, o senhor Luís de Priscos, está sentado numa cadeira de rodas, com o seu chapéu de pescador (uso a designação emprestada pelo Gonçalo Costa Martins que prepara, aqui ao meu lado, uma peça sobre mortalidade materna, usando, aos 23 anos, uns muito utilitários óculos de ver ao perto a lonjura e a complexidade do mundo). O senhor Luís também está de óculos, mas são óculos para a fotografia, para imaginar que nos vê ao longe. A notícia puxa para título que, aos 103 anos, ele ainda lê bem sem óculos. Eu tenho de me encavalitar nas cangalhas para perceber um pacote de biscoitos que ele segura sobre os joelhos, mais prendas nuns sacos que o presidente da Junta sustém por um instante, talvez livros que o senhor Luís tratará de desbravar sem lentes.
Aqui há uns tempos roubaram pela décima quarta vez os óculos de bronze da estátua do poeta Carlos Drummond de Andrade, em Copacabana. Drummond teria mais vinte anos que o senhor Luís se cá andasse e precisava de óculos para escrever versos como aquele “No mar estava escrita uma cidade” que acompanha a sua solidão no banco em que continua sentado de costas para o mar. Não me lembro de ler que alguém tenha roubado o verso de bronze, os ladrões do Calçadão devem ler mal ao perto.
Se me calhasse passar num destes dias por Priscos, iria abraçar o meu querido amigo padre João Torres e pedir-lhe-ia que me providenciasse um encontro com o senhor Luís. De que falaríamos? Talvez dos óculos inteligentes anunciados pela Meta. Vão ter um ecrã, diz uma notícia de há dias, e um preço muito acima da pensão que o senhor Luís receberá minguada a olho nu. No canto interior da lente direita, os óculos dispõem de um ecrã com aplicações que permitem tirar fotografias e aceder a mapas. Os óculos da Meta têm outro acessório associado, uma pulseira neural que permite controlar os óculos através de gestos. Não me custa imaginar que o senhor Luís devolveria um manguito a tal assédio tecnológico.
E enquanto o senhor Luís tacteia, aos 103 anos, o desconchavo do mundo, sem armações e sem lentes que o deformem mais do que já está, Marine Le Pen comparando-se a Martin Luther King, os mais de setecentos velhos que, nos últimos três anos, morreram sozinhos em casa, as rusgas a uma livraria palestiniana em Jerusalém, a baunilha de Madagáscar esmagada pelas tarifas de Trump, eu procuro no ecrã a tela onde Costa Pinheiro recriou, a óleo, os óculos do poeta Álvaro de Campos.
E assim me deixo ficar, os pensamentos vogando como um veleiro. Parabéns, senhor Luís. Boas leituras.