Na manhã fria de sol, dois pardais brincam junto aos meus pés. Estou sentado num dos bancos virados ao rio, a dois passos do Jardim Garcia de Orta, no Parque das Nações.
A vinte metros, uma mulher gesticula, olhando as águas. Desenha no ar gestos que parecem síncronos. No lodo da maré vaza, uma ave de arribação debica alimento, deixando um pontilhado de três dedos, pegadas tão leves que dificilmente serão objecto de estudo de futuros paleontólogos.
A mulher está sentada, talvez se aperceba da mesma ave cujo tricotado no lodo eu sigo, um pouco absorto. Talvez não.
Eis que se levanta, continuando a sequência de gestos, vagamente teatrais. Pressinto uma coreografia veemente, agora que a mulher abandonou o banco e se aproximou um pouco mais do rio, a seus pés. Está agora de pé e percebo que os movimentos dos seus braços no ar, a gesticulação cadenciada, o bamboleio do seu corpo não pretendem desenhar uma dança no vento. A mulher fala para longe, tacteando um desconforto doméstico ou uma impaciência laboral.
Não quero escutar o que diz, regresso à leitura, agora que os seus gestos a afastam de uma anteriormente imaginada ideia de dança.
Isso coincide com o momento em que dois rapazes se aproximam de mim. Devem ter perto de vinte anos, um deles é muito alto, segura uns folhetos, fica uns passos mais afastado. O outro pigarreia, dá os bons dias, um sotaque que atravessou o mar atlântico, as mãos reverenciais:
— Nós poderíamos fazer uma oração para o senhor?
Alguém preocupado com a minha alma, quando ainda não tomei senão um café. Evito responder com azedume ou cínica indiferença, sabendo que não seria adequado entregar-lhe o desabafo da conterrânea Adélia Prado, n’ “O Coração Disparado”, com os belíssimos versos sobre o poder da oração: “Em certas manhãs, desrezo: a vida humana é muito miserável”.
A manhã está tão serena, tão fria, mas serena, que não sinto “necessidade de bradar a Deus”, por interposta cunha evangélica.
Agradeci e eles foram na direcção da mulher que afinal não desenhava coreografias na margem do rio.
Ela, sim, talvez sentisse necessidade de bradar a Deus. Mas não deu, aos jovens de passagem, possibilidade sequer de apresentarem seus canónicos serviços.