Ontem aproveitei um fio de sol para me sentar num banco da praça Cidade de Dili, nos Olivais Sul, onde me demorei tantas manhãs durante o Verão, à sombra de árvore frondosa, secretamente implorando a benevolência dos pássaros. Regressado de férias, reparei que no empedrado da praça tinham irrompido ervas bravas de alguma envergadura.
Certa manhã, estava sentado a ler “Pedra e Sombra”, o magnífico romance do curdo Burhan Sonmez, cuja obra lhe tem granjeado o reconhecimento da crítica e dos leitores e a animosidade de sectores mais obscurantistas da sociedade turca. Burhan foi várias vezes preso e torturado pelas forças policiais de Istambul, e, por isso, obrigado ao exílio no Reino Unido. É actualmente presidente do Pen Internacional.
“Pedra e Sombra” leva-nos pelos tantos nomes de Istambul, avançando e recuando no tempo histórico, magnífica encruzilhada de religiões e de impérios que num rumor fundo se entrançam com os seus perfumados nomes. Vai uma criança perdida de sua mãe, cantando a palavra mãe em todas as línguas que apanha no vento e, num lugar de mortos, no cemitério de Merkez Efendi, renasce para o mundo, escutando a rádio e a palavra de um mestre talhador de túmulos. É o leitor levado a planaltos da Mesopotâmia, a colégios femininos ou hospitais de Istambul, às margens do Eufrates, a Damasco sob o comando francês, o tempo avançando e recuando, o menino Advo acolhido por um mestre talhador de túmulos é agora mestre, também, e envelhece moldando o mármore no cemitério de Merkez Efendi. Ávido de abarcar a sabedoria do mundo, talhando pedras tumulares e olhando o céu estrelado de Istambul, a rádio sempre acesa junto à fogueira, ele deita-se a páginas tantas, único habitante da cidade dos mortos, e adormeceu, caindo dentro de um sonho.
Nesta altura do livro eu já tinha reparado que umas ervas mais altas e mais esguias cresciam junto ao banco da praça Cidade de Dili onde me sentava. De tal modo que, em poucos dias, a erva brava era já arbusto, rompendo entre duas tábuas do banco. Cheguei a pensar que aquele arbusto seria árvore e daria, findo o verão, uma sombra propícia à minha altura, a copa rente ao meu ombro. Deixai que vos leia, entretanto, duas linhas da página 158 de “Pedra e Sombra”, que me prenderam a atenção na última manhã em que me sentei naquele banco: “Avdo acordou com uma sede que lhe queimava a garganta. (…) Levantou-se e dirigiu-se a passo lento à fonte, encostou a boca ao jorro de água fresca e bebeu abundantemente. (…) Sentiu que as folhas de erva de que não se apercebera lhe acariciavam os tornozelos. Aquilo significava que, no sonho, a erva crescia mais depressa. Dar-se-ia o caso de o tempo ser ali medido pela erva?”.
Fiz uma dobra ao alto da página 158. Haveria de voltar àquela passagem que tanto me perturbara. Na manhã seguinte, talvez alertados por um morador que, detrás de um reposteiro, me vira fotografando a erva que queria ser árvore, alguém cortou rente a erva bravia que parecia crescer para ser sombra das minhas leituras.