Num poema em que fala de um Ulisses farto de prodígios, chorando de amor “ao divisar a Ítaca / verde e humilde”, uma Ítaca que seria, afinal, “a própria arte”, Jorge Luís Borges chama a nossa atenção para o que um espelho nos pode devolver, poço sem fundo de uma alteridade desconcertante: “Às vezes certas tardes uma cara /olha-nos do mais fundo dum espelho; / a arte deve ser como esse espelho / que nos revela a nossa própria cara” – uso a tradução de Ruy Belo, na selecção de poemas escolhidos do argentino que o próprio Ruy Belo organizou para a Dom Quixote, no início da década de 70.
Borges ocupou-se muito de espelhos e do inesperado que eles podem devolver-nos, incluindo a margem do grotesco e do fantasioso com que nos surpreende no “Livro dos Seres Imaginários”. Ruy Belo deu-nos a ver os rostos, “o inesgotável rosto” de que fala no primeiro poema de outono, a nossa cara de andar na rua, a enorme responsabilidade de que se reveste a circunstância de termos cara.
A todo o tempo, alguém nos diz, a respeito de um objecto, de uma vestimenta, de uma ocupação mais ou menos trivial: “é a tua cara”. Não é a isso, a esse modo de dizer que afinal pouco diz, não é a isso que pretendo chegar.
Tomemos que os jornais espalhados sobre a mesa são espelhos, de outra maneira. Folheamo-los, não tanto em busca de Ítacas verdes, mas de rostos que nos acrescentem uma explicação do mundo ou, vá lá, uma perplexidade que desenhe uma pergunta, um sentido, um pé atrás, uma incredulidade. Nos jornais de hoje, desta manhã, ainda escondida no seu próprio insólito, a pergunta que tornou um vídeo viral, espelho sem fundo de um voyeurismo que precisa de ser alimentado, a mão de Brigitte na cara do marido presidente, à saída de um avião na pista de Hanói. O que foi aquilo, espelho nosso, uma bofetada ou, como explicou, o Eliseu, um gesto de cumplicidade? E o que é aquilo, no rosto de Jacinta, avó de dois rapazes levados pelo mar, na capa do JN? São talvez lágrimas, senhor. E que pedem tantos
banqueiros, de cara fechada, sentados na capa do DN? Pedem estabilidade e medidas, diz a tituleira. E a cara de Marcelo, ao que vem, na última do Negócios? Vem admitir que indigita. Não tarda, indigita.
Não te aproximes demasiado da foto de capa do Público. Ela é, entre todas as que povoam as capas de jornais portugueses, esta manhã, a que mais se confunde com a ideia de espelho. Tem cuidado, afasta de ti o jornal, mantém uma distância de segurança durante a leitura. Esta criança que parece fitar-te na foto premiada de Haitham Imad, da agência EPA, já nem mexe da face um músculo, já nem insinua um gesto na tua direcção. O rosto tem estampada uma palidez cadavérica, os braços e as pernas estão pousados numa esqualidez que abraça já a morte, uma das mãos suspensa como se pedisse a tua mão, a minha mão, o olhar parecendo saltar da órbita para um abismo insondável. Não olhes muito de perto este rapaz de Gaza, ele pode morrer por um euro e sessenta sobre a tua mesa, ao lado do teu café da manhã, bofetada ou apenas a mão que quer pousar, cúmplice na tua cara, o que fica suspenso da mão desta criatura que parece saída de um livro dos seres imaginários… Não olhes muito de perto, o espelho que devolve a tua cara.