Estas mãos sobrepostas, distendidas sobre o corpo que jaz, o rosário entrelaçado nos dedos que talvez sejam seis em cada mão, como no poema de Jaime Rocha, “seis dedos para abraçar a terra”, estas mãos acariciadas pelo olhar de Simone Risoluti, da Reuters, para a safra dos jornais, e assim pousadas na capa do Público, tão serenamente, cobrindo a “longa fadiga dos homens” de que fala um poema de Raul de Carvalho,
Porque os dedos multiplicam-se como os peixes nos milagres e estas mãos terão sido concha para a voz de Pedro, a voz que vem sobre as águas no mar da Galileia, “Senhor, trabalhámos a noite inteira e nada pescámos; porém, sob a tua palavra, lançarei as redes”,
Assim a concha da voz que estas mãos foram guardou a palavra daquele que caminhava sobre as águas e lhe disse “de agora em diante, serás pescador de homens”,
E Pedro e os companheiros exultavam ainda ontem na rádio, tanta a sardinha trazida nas redes que as conserveiras arremataram a 20 euros o cabaz,
Está a mão direita pousada sobre a outra, não tarda será despojada da prata banhada a ouro que ainda se nos revela no anelar direito, disso cuidará o camerlengo tacteando trapézio e escafoide, quando chegar a hora,
Como agora chegou a hora de dar nome ao corpo decomposto que as águas devolveram em Fevereiro e o nome que as redes trazem é o de Flávio, pescador em sua morte tão jovem como os deuses amam, as luzes de Lisboa diante dos olhos quando perdeu dedos e anéis num mar da Galileia com ferryboats,
Estão tão contentes os pescadores da Figueira da Foz que a repórter Diana Craveiro escutou na rádio e os de Matosinhos que desesperavam desde o Natal e agora mostram os cabazes cheios no JN, os do “Mestre Lázaro”, os do “Rumo da Senhora da Guia”,
Talvez regresse, por estes dias, ao livro que, faz agora cem anos, Raul Brandão dedicou ao avô, “morto no mar”, é um admirável livro, “Os Pescadores”; logo na introdução, antes ainda de nos levar à Cantareira, Brandão sugere que “basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar”. Uma lenda polinésia sugere que o búzio guarda, afinal, a voz de Deus,
Regressarei, sim, ao Quarto Poema do Pescador, eu que nunca pescarei um robalo de seis quilos, caso contrário talvez lhe chamasse Deus, assim sozinho, frente ao mar,
Entretanto, uma última vez, detenho-me nesta mão direita que ainda ostenta o anel do pescador e imagino que nas voltas do rosário ela conta cabazes a transbordar de sardinha, enquanto os seus dedos se multiplicam como os peixes nos milagres.