A nota mais saborosa da intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa numa iniciativa do jornal Público sobre literacia mediática revelou uma curiosa cedência do presidente à emocionalidade deste tempo em que, são palavras suas, “a realidade não está racional”.
Não obstante a apreensão presidencial face à afirmação de novas “lideranças emocionais”, aquilo que vai sobreviver mediaticamente da intervenção de Marcelo (apesar de o discurso se ter centrado nos perigos que espreitam a democracia, nestes dias em que “não há moderados, só radicais”) é a nostalgia dos dias felizes que marcaram oito anos de coabitação política com António Costa.
O presidente confidenciou o que dizia muitas vezes, “a um governante” com o qual partilhou “quase oito anos e meio de experiência inesquecível”: “Um dia reconhecerá que éramos felizes e não sabíamos”. Empolgado com a sua própria insuspeitada nostalgia, o presidente apressou um porém: aquela era “uma felicidade relativa, mas comparado com o que vinha por aí, era uma felicidade”. Com ou sem porém, foi a vez de Marcelo estender ao presidente do Conselho Europeu uma sombrinha melancólica, ainda que sem o aparato de uma certa serenata à chuva em Paris.
Não é necessário retirar a frase de contexto, ou despi-la da nostalgia que não é da natureza da política mais utilitária, para que ela nos conduza a um belíssimo poema de Cecília Meireles, à janela aberta sobre a cidade que “parecia ser feita de giz”. Visto dessa janela, Marcelo toma o lugar do pobre que, todas as manhãs se aproximava, com um balde, do jardim que parecia morto. E, “em silêncio”, conta Cecília Meireles, “ia atirando com as mãos umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse”. É ainda Cecília Meireles: “E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caiam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz”.
Nesse poema intitulado “A arte de ser feliz”, Cecília Meireles descreve o que vê da janela: um jasmineiro em flor, pardais que pulam pelo muro, “gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais” Ela considera: “Tudo está certo no seu lugar, cumprindo o seu destino”. E por isso se confessa “completamente feliz”.
A “felicidade relativa” de que falou Marcelo não nos leva para esse “jardim quase seco” que um pobre velho reabilitou, ainda que nos alerte para a aridez racional destes tempos. De qualquer modo, os oito anos de “felicidade relativa” que o presidente evocou foram, nas suas palavras, “inesquecíveis”. E isso torna ainda mais nebuloso o sentido de uma dissolução.
Costa não escapará ao cerco dos repórteres, ansiosos por calcular o grau de felicidade que colheu de oito anos de coabitação.
Não é previsível que responda socorrendo-se de uma certa quadra pessoana ao gosto popular: “Todas as coisas que dizes / afinal não são verdade. / Mas se nos fazem felizes / isso é a felicidade”.
Algures, gatos abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.