1.
Regressei em agosto ao meu antigo liceu.
A escola está diferente, é como se fosse outra ou então sou eu que, depois de tantas obras, me transformei.
Ainda assim, passei pelo muro onde joguei ao Bate-Pé pela primeira vez.
Sabes do que falo?
Jogaste?
2.
Naquele muro, numa manhã sem aulas, estava com os duros, o que me orgulhava.
Para eles, era um betinho.
Não sabia, como o Moreira, cantar o Sandokan a arrotar.
Não sabia, como o Bolhões, dar beijos com a língua.
Não sabia, como o Zé Miranda, emborcar uma garrafa de tinto antes da primeira aula da tarde.
Não sabia, como o Macaco, tirar a tampa das garrafas com a boca.
Ajudava-os a fazer os trabalhos.
Jogava bem à bola.
E não me desajeitava a andar à porrada, o que os divertia pela surpresa.
Resumindo, era tão ou mais idiota do que eles.
3.
Bem, na manhã em que joguei Bate-Pé estava com eles e com a Ana Maria, a Ana Isabel, a Sónia e a Elsa.
Tínhamos de dizer números.
E depois os números eram aceites ou não.
O um correspondia a um aperto de mão.
O dois a um beijinho na cara.
O três a um na boca.
O quatro a um linguado.
O cinco a um marmelanço com apalpões.
Foi uma manhã diabólica que me influenciou o destino.
Nenhuma das amigas me pediu mais do que um dois.
E eu não consegui pedir mais do que um três, um beijo rápido na boca à Sónia que a fez rir como se não houvesse amanhã.
4.
Vi o Macaco e o Zé Miranda nos olhos das miúdas da turma.
E vi-me a mim como o deslavado, o transparente, o lixívia, o pó de arroz, o branquinho, o albino.
Aquilo doeu-me.
Mas prometi vingança.
Trabalhar para que a Ana Maria, um dia, me aceitasse como era.
Se não pudesse ser um cinco que fosse um quatro – o que acabou por acontecer uns meses mais tarde.
Talvez por misericórdia aceitou beijar-me.
Tinha a boca cheia de pastilhas gorila.
E eu acreditei que os beijos prolongados se davam com pastilhas na boca.
Não sei como me consegui safar na vida.
Talvez tenham sido as obras.
Em mim e na escola.
Ou talvez tenha sido Deus que me olhou com infinita pena nessa manhã de tormento.
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