1.
Habituámo-nos a não ir para a guerra.
Foi a melhor notícia que a minha geração poderia ter tido. A partir de nós já não existiam motivos para nos preocuparmos, não havia conflitos que pudessem originar matanças globais.
Pudemos entreter-nos com outras coisas.
Gastar horas em equações em nunca pensáramos, criar condições para nos preocuparmos com os nossos filhos, oferecer-lhes uma boa vida com abraços, empatia e proteção.
2.
Neste último meio século as crianças tornaram-se crianças mesmo. Infantilizaram-se. E são miúdos até muito mais tarde.
Ultraprotegidas, com múltiplas atividades e sem contacto com a rua ou com desenhos animados que as possam chocar antes de tempo.
Claro que as redes sociais e a internet baralharam estas contas.
Sabemos tudo sobre os nossos filhos menos o que se passa no seu quarto – o que fazem no computador, com quem contactam no seu mundo virtual, o que congeminam sem que o percebamos.
Contas para outro postal.
3.
O que me traz aqui hoje são os desenhos animados.
Os que eu via e os que os meus filhos veem.
Nasci em 1971 e os desenhos animados que aplaudi, os desenhos que me emocionaram, estavam ainda contaminados pela guerra.
Os miúdos em Inglaterra, França, Estados Unidos, Japão, Espanha ou Itália, sabiam o que era a morte e conviviam naturalmente com ela.
Tinham amigos órfãos ou eles próprios não conheciam o pai, mãe ou avós – os desenhos animados iam ao encontro dos fantasmas que os habitavam.
4.
Quando era criança rezava a Deus todos os dias antes de adormecer. E pedia-lhe para que não me chamassem para ir à guerra.
Desconheço a razão para esse pensamento, mas sei que a ideia de ir combater estava presente.
Não passava pela cabeça dos nossos pais questionar que os desenhos animados nos faziam mal à cabecinha, pelo contrário.
Ver Bambi e a Pipi das Meias Altas, o Marco e a Heidi, o Pinóquio ou o Dumbo, o Conan ou o Oliver Twist, fazia-nos bem, ia ao encontro do que precisávamos.
Nós éramos os miúdos que viviam em paz, mas que estavam preparados para a guerra. Que tinham a guerra incorporada no que eram.
Os nossos filhos não.
Nos desenhos animados que veem já não há órfãos, medo ou morte – só na Manga, mas essa é outra história.
Veem a Porquinha Peppa.
A Patrulha Pata.
A Bluey.
A Casa de Bonecas da Gabby.
Deixámos, e ainda bem, de estar preparados para a guerra.
Receio o dia em que os desenhos animados voltem a ser como no meu tempo.
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