Um velho camarada de ofício que já cá não anda, necessitado de um papel carimbado de um qualquer balcão administrativo, enfrentou o inquérito da funcionária entufada, cujo olhar não acompanhava as perguntas. Ela despachou o questionário, sem uma só vez fitar a sua urgência resignada, ele respondeu com uma secura contrafeita. Nome? Fulano de tal. Idade? Tanta. Data de nascimento? Tantos do tal. Morada? Rua tal, em tal sítio. Profissão? E ele, impassível, tomado por secreto demónio, esticando a corda: Encantador de serpentes.
A funcionária entufada, escreveu, sem o mínimo sobressalto de sobrancelhas, sem inopinado estremecimento de espanto ou de menosprezo. Pergunta seguinte.
Muitas vezes me lembro desta história e logo entreteço um inventário de ofícios sublimes. Herberto Helder, que sabia das palavras a música secreta, regressou de Luanda e escreveu, na página 14 de “Photomaton & Vox”: “Gostaria de ser entrançador de tabaco”. Há tempos descobri que existem rebocadores de icebergs e especialistas em dormir, tipos pagos para dormir. Talvez haja tipos pagos para sonhar, talvez não. Se eu pudesse escolher ofício para os dias futuros procuraria aquele que me permitisse ver passar navios.
Manoel de Barros, meu poeta mais amado, imaginou-se apanhador de desperdícios. Ele acreditava que nascera para administrar o à toa, o em vão, o inútil. A fasquia dele era tanto mais alta quanto menos soprada de caganças. Ele passou a vida a colher palavras mágicas de tudo o que o seu olhar tocava, mas avisou: “Não gosto de palavra acostumada”. Disse-o de mil maneiras. Assim, por exemplo: “Palavras que me aceitam como sou, eu não aceito”.
Cada um é para o que nasce, será que sim? Quando nasci, nenhum anjo me disse “vai ser gauche na vida” e eu fui.
Mas na verdade não quis ser outra coisa além de recolector de palavras perdidas. Não fiz outra coisa senão colher da árvore prodigiosa as palavras mais belas, alaúde, cítara, veleiro, rododendro, andarilho. A pouco mais aspirei.
Mas os dias não se apresentam propícios.
Até sempre.