Abrindo o apetite da crónica, como é que estamos de fome?
Apronta o teu caderninho e vai anotando. Está ainda dentro do prazo o aviso feito, talvez anteontem, pelo Programa Alimentar Mundial de que “o risco de fome é real” em Gaza. O aviso vem da maior organização humanitária do mundo, merecidamente galardoada com o Nobel da Paz em 2020, implicada na ambição, por certo pueril, de erradicação da fome em 2030. Netanyahu já lhes dá o arroz.
Só encontras notas dessa fome que avoluma os estômagos da inocência cedo perdida, lá no sul do Sul?
RFI, há quatro dias, toma lá Sudão (ou talvez deva dizer “toma cá Sudão”, aproxima-te o quanto possas: Justine Piquemal, a directora regional da ONG Solidarités-Internacional conta que há crianças obrigadas a comer cascas de árvores. Tira-te o apetite?
Repara no título vitamínico que encontrei num jornal brasileiro, na passagem da designada Semana da Soberania Alimentar. Tomando como ponto de partida o facto de um terço da população mundial não ter acesso regular a alimentos, o Diário Carioca consegue um ponto de chegada de razoável efeito jornalístico com este título: “Soberania alimentar ou fome soberana?”. Assim o anotador vai saciando a sua fome de histórias. O que liga bem com quê. Como nas receitas.
Receita admirável, aquela que o jornal digital Sete Margens revelou há dias: receita tão simples, vendo bem. Os quase mil e trezentos alunos de uma escola da província moçambicana de Nampula começaram a receber um lanche escolar, fornecido por uma ONG portuguesa. Um dos alunos disse, entre duas trincas na sandes: “Assim já penso melhor”. Estava encontrado o título da notícia.
Há uma fome funda e antiga, tão antiga que parece ter sido semeada no mais dentro do chão. É como naquele poema do grande Craveirinha, rodeado de fome de tudo, fome concreta, concreta fome de tudo: “Nós mastigamos fome / quando não há comida. / Quando não há arroz em casa, /mastigamos fome até encher barriga”.
Vá-se lá entender os poetas. Adélia Prado, do outro lado do mar, lança lenha para a fogueira: “Não quero faca nem queijo /quero fome”. Sem esta fome de que falam os poetas é mais difícil erradicar a outra. A concreta fome de que se ocupam as ONG’s e o Programa Alimentar Mundial.
Nada que tire o apetite a Netanyahu.