1.
O meu prédio pobre de infância era um castelo.
Pelo menos, assim o pensava… ou o desejava, o que na minha fértil imaginação ia dar ao mesmo.
Na Correia Teles, número 99, passagem de perdidos a caminho de mais uma dose de heroína, vivia a Germana.
Morava no 2º Esq., era mais alta do que a média das mulheres da sua idade, mais aperaltada também e, sobretudo, mais magra.
Olhava para a Germana com enorme curiosidade.
Vivia com um periquito verde e recebia o amante às quintas-feiras à tarde – era o único dia em que não saía para almoçar fora.
2.
Eu que apenas almoçava em restaurantes quando íamos à Feira Popular, abria a boca de espanto com a sua vida de rica.
A Germana, sempre nas suas pernas esguias realçadas pelos vestidos de fina, ia frequentemente passar o serão a nossa casa – sentava-se a um cantinho do sofá da avó Joaquina a ver a novela e o programa que viesse logo a seguir.
Os vizinhos nunca a tratavam por Germana.
Não me recordo de algum dia a ter chamado pelo nome ysando todas as letras, ela era a Gé.
3.
Um dia perguntei-lhe porque não me levava a almoçar.
Respondeu-me que o dinheiro não era elástico e pediu-me para não ter pressa…
… “vais ver que quando chegares à minha idade ficarás farto de almoçar fora”.
Nunca ia à missa e nunca ajudava em nada que lhe desse trabalho.
– “Já trabalhei muito, agora que façam os outros que têm bom cabedal”.
4.
A Gé não tinha ninguém, só o amante que um dia deixou de aparecer por se ter posto ao fresco por culpa de uma notícia com a sua cara no Diário de Notícias ou no Século.
No prédio comentou-se que o Senhor Fernando (tenho quase a certeza de que era Fernando) fora um importante inspetor da PIDE.
Quando o amante desapareceu mais a sua gabardine branca, ficou apenas o Dartagnan, o periquito verde a quem a Gé trazia um petisquinho dos almoços.
5.
Hoje era isto.
Recordar a Gé.
Todas as Germanas.
Que neste Dia de Portugal saibamos honrar a memória dos que fomos encontrando pelo caminho.
Anónimos, aparentemente indiferenciados, sem história relevante, mas que tiveram a sua importância.
Uma estória que não vem nos livros de História, mas que é também uma parte decisiva deste país que nos une.
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