1.
A manhã tinha sido perfeita.
O Nuno costumava ir com a sua prancha àquela praia de Peniche – as ondas eram boas e o bodyboard tranquilizava-o.
Em cima das ondas tudo parecia relativo.
Os problemas passavam a não ter tanta importância, o stress no hospital onde era cirurgião geral era compensado, os pensamentos circulavam-lhe com mais velocidade.
Naquela manhã de 29 de setembro de 2021, o doutor Nuno Barahona Abreu estava particularmente contente.
Sentia-se livre.
Quase como se fosse um pássaro ou um peixe.
2.
Deixou-se cair sem se proteger e bateu com a cabeça no chão.
Perdeu os sentidos sem os perder.
Deixou de sentir o corpo, mas o fato puxou-o para cima.
Esteve vários minutos a boiar no fato, à espera que alguém o ajudasse a sair dali, mas sem esperar que acontecesse.
Nuno pensou que chegara ao fim, ocorreu-lhe que já estivesse morto quando alguém o tirou do mar.
Se não o tivesse tirado naquele momento uma onda tê-lo-ia engolido para sempre.
3.
Foi salvo, mas fraturou a coluna cervical e a medula foi atingida.
Nuno, cirurgião e amante do desporto e da liberdade – quer fosse a remar, quer fosse a lutar artes marciais, quer fosse no surf, ele procurava uma outra respiração, mais camadas de si próprio, talvez um pouco mais de sentido e de foco.
Quando acordou nos cuidados intensivos nenhum médico teve de lhe dizer alguma coisa, o Nuno instintivamente soube o que lhe acontecera.
Ao abrir os olhos viu a sua mulher.
Viu-lhe o sorriso e as lágrimas.
E reuniu toda a força que conseguiu para lhe dizer: “Não quero que passes por isto. Quero que te vás embora, não te quero ver mais”.
4.
Marisa nem o ouviu.
Ficou.
E nestes anos tem feito tudo pela reabilitação de Nuno.
Um caminho lento que nunca terá um fim. O cirurgião nunca mais poderá voltar a operar ou a fazer surf ou artes marciais ou remo, mas está melhor.
Na cadeira de rodas é quase autónomo.
E deve-o ao amor de Marisa e ao homem que o salvou.
Alguém que tenta desesperadamente encontrar para lhe agradecer.
Já o procurou, já destacou amigos para saber quem poderia ser, mas nenhum surfista conhece o anjo que, naquela manhã, aparentemente perfeita, apareceu em Peniche para oferecer uma segunda vida a quem perdera a esperança.