Voltarei a este livro de Alexandra Lucas Coelho, este livro intitulado “Gaza está em toda a parte” que o produtor Carlos Mateus me entregou, há pouco, às sete e um quarto da manhã. É um livro que eu esperava, um demorado livro de urgência, que me apresso a retirar do embrulho com sofreguidão, que me apresso a cheirar, como faço sempre quando chega um livro. É muito intenso o cheiro deste, grosso como um tijolo verde, o Gonçalo, aqui ao lado, fala do cheiro que se desprende das páginas que folheio, “cheira a obras, é um cheiro estranho, mas bom”, diz ele, a Oriana, “cheira a acabado de sair da gráfica”, o Mário também vai por aí, eu respondo, “cheira-me a maresia, uma maresia suave”, tem muitas fotografias, em algumas está a praia de Gaza, mostra jovens a tomar banho no mar de Gaza, o mesmo mar de Gaza tantas ondas depois, tantas vezes sete ondas depois, tanta rebentação, detenho nos três jovens a tomar banho em Gaza quando a sordidez não tinha forjado futuros postais da Riviera. Há, pois, jovens banhando-se na maresia destas páginas em 2017 e há o correr dos dias sobre os quais foram despejados obuses, são 148 fotografias a cores, quase todas inéditas, “Gaza está em toda a parte”.
Há roupa pendurada nas casas que ainda tinham parabólicas nos terraços, vendedores de mercado sorrindo junto às bancas cheias de morangos e de pepinos e de ovos, um cavalo branco pisando a fita de asfalto sem mácula junto à zona portuária, enormes peixes pendurados num mercado improvisado, uma pintura mural em que podemos ver um polvo e um golfinho em traço infantil, uma mulher afagando um cavalo. Folheio como se isso me pudesse transportar a este lugar friamente demolido diante dos nossos sofás, este lugar onde os jornalistas estão impedidos de entrar desde Outubro. Aquela frase numa parede: “Get out of my house”. Aquele sofá num chão de escombros. Aquelas muralhas da cidade velha. Aquelas gotas de chuva na vidraça.
É um livro desconcertante. Crónicas, reportagens, a escrita avassaladora de Alexandra Lucas Coelho, rigor e fúria, muito rigor e muita fúria, o dedo apontado aos governantes do país e da Europa onde Alexandra nasceu. Quando lerdes, se lerdes, guardai no mais fundo do vosso entendimento, o modo como ela nomeia aquilo com que vos confronta: “a vossa vala comum”. São palavras deste Abril, deste 8 de Abril, nelas canta a cólera, “vinte e oito séculos depois da Ilíada”.
Alexandra está zangada com eles, convosco. Nasceu “no ano em que Israel ocupou Gaza, Cisjordânia, Jerusalém Oriental”. Viu a vossa, a nossa, vala comum. Despejado o saco da fúria, ela não vos pede que olheis as crianças de Gaza. O presságio com que ela encerra este livro que cheira a maresia é o de que olheis nos olhos das vossas crianças.
Há aqui uma urgência que me leva a deitar fora o que tinha escrito e a alinhar palavras com as quais folheio este livro em voz alta. Procurai este livro antes de partirdes para a estrada, em campanha. Antes do verão. Este não é um livro bom para as vossas férias, para as vossas Rivieras.