1.
Em meados da década de 1980 frequentava um liceu de ricos e bem-nascidos.
Bem, considerei-me sempre muito bem-nascido, mas naquela altura não me era fácil ter as moedas suficientes para ir ao bar a meio da manhã ou da tarde.
Os meus colegas no Liceu Pedro Nunes nunca me trataram mal, pelo contrário. Tinha alguma popularidade, jogava bem basquetebol, marcava bons golos no futebol, era um dos mais rápidos a correr, falava de política e literatura, escrevia cartas de amor quando as miúdas me pediam para as escrever.
2.
Nunca tive namoradas no liceu.
Era acanhado, um tímido que preferia não arriscar dar um beijo com a língua pelo medo de o fazer mal. Depois era demasiado branco, demasiado intelectual, demasiado perfecionista, um chato do caraças.
Mas tinha alguma graça.
Fazia coisas que me orgulhavam ou me protegiam…
…ou as duas coisas ao mesmo tempo.
3.
Chateava-me só levar sete e quinhentos que davam apenas para comer uma sandes de mortadela.
Os meus amigos não tinham esse problema. Compravam rebuçados de fruta e sandes de queijo ou fiambre que custavam 15 escudos.
Durante algum tempo não pedi nada.
Preferia não comprar a mortadela à vista deles – não era que tivesse vergonha de ser pobre, mas eram chatos e obrigavam-me ao ofício da retórica, passava bem sem isso.
4.
Só que numa manhã qualquer a fome apertou e fui comprar o pão com recheio de porco.
Comi-o com pequenos gemidos de prazer.
Contei uma ou duas histórias sobre o grande achado da mortadela, a primeira vez que a provara, a impossibilidade de comer outra coisa pois tudo me parecia sem sabor quando comparado com aquela delícia.
A malta gozou-me à brava, mas no dia seguinte alguns experimentaram.
Depois mais ainda.
E às tantas as sandes de mortadela venderam mais naquele ano de 1986 do que alguma vez na história do Pedro Nunes.
Quase todos se renderam ao porco.
E eu pude comer como se fosse um igual.
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