1.
Há uns tempos, talvez vinte anos, estive durante largos meses na Casa de Saúde da Idanha.
A minha intenção era a de realizar um documentário na maior casa de saúde psiquiátrica de mulheres, na altura mais de 400 estavam lá internadas.
Nesse ano os meus olhos viram muito.
Vi o incansável trabalho das Irmãs Hospitaleiras, a sua segurança durante as crises das doentes, a tranquilidade que transmitiam quando tudo parecia desmoronar-se – saudades da Irmã Maria e da Irmã Alegria.
Caminhei por aqueles longos corredores, pelas oficinas de trabalho, pelos gritos e gargalhadas, pelas descompensações e redenções, pelo bar, pelas consultas, pela fisioterapia, pelos quartos.
Passei uma véspera de Natal com elas.
Com as que não tinham para onde ir.
2.
E conheci uma menina maravilhosa com pouco mais de vinte anos.
Muito bonita, muita tranquila, muito apaziguada.
Perguntei às irmãs da razão para ela estar internada pois parecia-me igual a qualquer pessoa tranquila e apaziguada.
Uma esquizofrenia que lhe surgira de um momento para o outro e que agora lhe galopava no cérebro – ouvi como resposta.
Fiquei espantado e mais ainda depois de conhecer os pais, um homem e uma mulher aterrados por ali estarem, por ali deixarem a sua menina, um homem e uma mulher com olhos bondosos e empáticos.
3.
Conhecia-a melhor com o tempo e ganhei a sua confiança.
E um dia mostrou-me a música que ouvia e agarrou-me na mão para que eu fosse testemunha do seu segredo.
Abriu uma gaveta com roupinhas de bebé impecavelmente dobradas.
Casaquinhos, vestidos para todas as estações, uma fraldinha, uma manta macia e uma touca.
4.
Não percebi logo.
Tens um bebé, perguntei.
Tenho, está na barriga, respondeu.
Fiz-lhe uma festa genuína – que bom, que maravilha de notícia.
E ela continuou como se não me tivesse ouvido: “Vai nascer amanhã, aqui em casa tem sido uma festa enorme, adoro namorar as montras e tenho roupa já embrulhadinha para os dias na maternidade. Queres ver as bonecas e os carrinhos?”
Abracei-a e a menina bonita, tranquila e tão magra desembaraçou-se do meu abraço com uma genuína justificação:
“Desculpa, não me podes apertar porque estou muito grávida, de nove meses, estou muito pesada”.
5.
Penso muito nela.
Pensei hoje nela.
Naquele bebé imaginado que não a faz tão diferente de tantas mães que fazem enxovais à espera de um bebé que nunca chegará a nascer.
Este postal é então para todos os bebés imaginados e para todas as mães sem filhos.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, YouTube e RTP Play.