1.
Gustavo Carona é muito jovem, mas os seus olhos já viram o mundo do avesso.
Nasceu com a ideia de que o mistério estava no bem e foi por esse caminho que entrou, o caminho dos que fazem o melhor possível para ser úteis aos outros, a todos os outros, a todos os que precisam.
2.
Licenciou-se em medicina, tornou-se anestesista e a vida encarregou-se de o encaminhar para cuidar dos doentes que necessitam de cuidados intensivos.
Muito jovem, ainda mais do que é hoje, dedicou-se à medicina humanitária. Aproveitou quase todas as férias, quase todas as folgas acumuladas no Hospital Pedro Hispano, para ajudar nos lugares mais esquecidos por Deus.
Esteve no Congo, na Síria, em Gaza, na República Centro Africana, no Afeganistão, no Sudão, no Iémen, no Iraque, em todo o lado.
Os seus olhos viram muito, as suas mãos fizeram muito, salvaram muitas vidas.
Tirou bebés da barriga de mães desfeitas, resgatou de comas, travou gangrenas, deu esperança no último sopro de penitentes.
3.
E durante a pandemia andou na primeira linha.
Tornou-se uma espécie de anjo que nos protegia ou apaziguava – a juventude e a força de Gustavo ofereciam-nos esperança e quando o ouvíamos, quando o líamos, não era justo que desistíssemos ou não fizéssemos a nossa parte.
Aquele médico do Porto, com ligeira e bonita pronúncia do Norte, ouviu vezes sem conta os doentes jurarem-lhe que o céu lhe estava reservado ou que era um santo ou qualquer coisa do género.
4.
O caminho que escolhera na infância tinha-se concretizado e ele não podia sentir-se mais feliz e recompensado.
Mas a vida pode ser incompreensível.
Gustavo começou a sentir-se cansado e com dores ciáticas que associou a uma vida demasiado intensa… só que não.
Era o corpo a anunciar um fim antes do fim.
Um sofrimento inaudito antes do sofrimento.
Uma doença crónica e incurável que o condenou a uma cama quase em permanência – sem poder exercer medicina, sem poder salvar mais ninguém, com dores horríveis todos os dias, todas as horas, todos os minutos.
Como tentar explicar o inexplicável?
Como explicar que Gustavo Carona, médico de 41 anos que se sacrificou pelo bem comum, tenha sido apanhado por um buraco negro que o condenou ao mais brutal destino?
5.
Caro Gustavo, não há mais palavras, mas quero dizer-te que entre os que tiraste de escombros sem luz, não há quem te esqueça.
Lembras-te daquela mãe que te olhava enquanto salvavas o seu bebé? E do olhar agradecido dos tantos que salvaste?
Isto deve ter uma explicação, um dia contas-me e eu estarei aqui ou aí para te ouvir.