1.
Há profissionais da solidariedade.
Pessoas que vemos nas manifestações a gritar palavras de ordem contra o genocídio em Gaza.
A prestarem a sua solidariedade com os ucranianos ou com os direitos da comunidade LGBT.
A revoltarem-se com a destruição acelerada do planeta, contra a contrarreforma dos direitos laborais, contra a falta de casas nas grandes cidades, contra a violência doméstica, contra o abandono dos animais de estimação, contra o aumento das propinas, contra o Chega e a favor dos imigrantes, contra as fake news e o controle da comunicação social, contra a América e os algoritmos, contra as touradas, contra a justiça, contra a violência contra crianças ou o racismo ou as condições nos lares.
2.
Escolho temas que apoiaria sem pestanejar.
Só que o problema não é termos opinião, pelo contrário.
O problema é entregarmo-nos a todos os assuntos ao mesmo tempo e com o mesmo grau de paixão.
Participando em reuniões de mobilização.
Escrevendo.
Gritando.
E tudo o resto.
É que, entregando-nos a todos, tornando-nos profissionais da indignação, não conseguimos ser profundos e consequentes em nada do que desejamos alterar.
Corremos o risco do ridículo.
É tudo tão importante, tão urgente, tão revoltante que acabamos por igualizar assuntos que não têm a mesma importância – e se os igualizamos todos passam a valer o mesmo…
isto é…
… nada.
Todos acabam por nada valer, apenas sustentar a nossa própria fome de indignação.
Uma outra maneira de ser carne para canhão.
3.
Há também um outro fenómeno.
O de uma parte de nós se comover com tudo e com todos.
Sobretudo depois de uma tragédia, de uma morte, sobretudo se for violenta.
Vemos canalhas a transformarem-se em anjinhos por terem morrido.
Gente violenta, gente que estimulava a violência e o pior que temos, gente que esteve sempre ao lado dos que exploravam instintos primários, gente coberta de ódios, mas que ganha adeptos depois da morte.
4.
Não falo especificamente do jovem americano radical abatido por um outro maluco radical.
Falo no geral.
Da nossa tendência para amenizar o que não pode ser amenizado.
Por condescender, o que não é passível de condescendência.
Por relativizar, o que tem de ser absoluto.
A morte não pode ser celebrada.
Mas os que morrem depois de uma vida em guerra não podem ser recordados como referenciais de liberdade.
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