1.
Uma mulher misteriosa tem cumprido um rigoroso e ensurdecedor silêncio em frente à entrada nova da Assembleia da República.
Todos os dias, deputados, pessoal dos gabinetes, funcionários e visitas dão por aquela estranha e silenciosa presença
Não sei como se chama. Não é indigente, não parece louca nem sequer minimamente perturbada.
É uma mulher de meia-idade, bem-vestida, protegida do frio quando está frio, de mãos nos bolsos, cachecol e chapéu, impassível no seu silêncio, na sua imobilidade.
Sempre de pé.
2.
Como se chamará?
O que estará ali a fazer?
Que história será a dela?
Uma paixão não retribuída ou consumada?
A tentativa de ver alguém, de falar com alguém?
Uma desilusão política?
Uma aposta com um amigo?
Continuará a aparecer e a ficar ali?
Ou desaparecerá sem deixar rasto?
Há deputados que passaram a ir à janela só para a ver.
Há quem fique arrepiado, preocupado ou divertido – há sempre gente para todos os gostos.
3.
Quando era miúdo seguia pessoas no quarteirão da minha infância. Especulava para onde iam, de onde vinham, que segredos ocultavam.
Acredito que nos aconteça a todos, que te aconteça a ti – aquela pessoa que vemos todos os dias no café sem sabermos mais, as
caras familiares com quem nos cruzamos nos transportes, nas ruas, na vida.
Chegam a fazer-nos falta quando nos faltam.
Como se pertencessem ao nosso palco ou fossem parte de uma cenografia imaginada para nós. É bem possível sentirmos a ausência de quem nem sequer sabemos o nome.
4.
Será isso que ela deseja?
Que as pessoas lhe sintam a falta quando ela desaparecer?
Que queiram saber?
Ou será que quer apenas, pela primeira vez a sua vida, ser notada, pensada, de alguma forma desejada na sua história?
Não sei.
Sei que todos os dias fica parada em frente à entrada nova do Parlamento.
Em absoluto e rigoroso silêncio.
Como se fosse um espectro.
Como se não fosse daqui.