1.
No próximo 25 de maio, Benfica e Sporting voltam ao Estádio do Jamor para jogarem a final da Taça de Portugal.
O jogo acontece 29 anos após a trágica morte de um adepto do Sporting.
Quem viu não esquece.
Eu estava na bancada central onde os vencedores levantam a taça. Também eu ouvi o very light.
2.
Há um grupo de marginais que reconstitui o som da morte nessa tarde de 18 de maio de 1996. Em alguns jogos do Benfica, imitam o silvado do very light e cantam um verso de gozo e alegria por terem conseguido matar um sportinguista.
Eu estava no Jamor nesse maio.
Tinha 24 anos e um cachecol vermelho.
Sou um benfiquista que sofre com as derrotas e sei que não vale a pena acreditar que algum pingo de humanidade possa chegar a pessoas que não são bem pessoas, há gente que nasceu com um defeito de fabrico, só pode ser isso.
3.
Mas mesmo assim vou tentar.
Quando fizerem o som da morte.
Quando gozarem com o “lagarto” que morreu, lembrem-se que se chamava Rui.
Que morava na segunda ou terceira casa à entrada da aldeia de Sula, muito perto da Mealhada e dos hotéis do Luso.
Que casara há relativamente pouco tempo com a Paula e que quase toda a gente da aldeia lhe deu uma prenda.
Que tinha dois filhos pequeninos, a Liliana e o Diogo.
Calculo que nada vos interesse, mas o Rui era adorado por toda a gente, benfiquistas incluídos.
Ia buscar lenha para os velhotes que não podiam.
Ajudava onde fosse preciso e fora do seu horário de trabalho.
4.
Quero que saibam que quando a mãe teve a confirmação de que o filho morrera por estar no lugar errado à hora errada, correu pela aldeia a gritar.
“O meu filho morreu, mataram o meu filho, mataram o Rui”.
Que as mulheres da aldeia abraçaram a Maria Adélia.
Que os homens fizeram o mesmo com o Tio António.
Que os dois miúdos, uns dias depois, vestiram a roupa de domingo para se despedirem do pai num funeral que encheu as ruas do Luso.
Que passaram quase trinta anos, mas que ainda não conseguem falar do pai.
Das histórias que ficaram por contar.
Dos netos que ele não pôde conhecer.
Das palavras que nunca foram ditas.
Dos abraços que nunca aconteceram.
O pai e a mãe do Rui já morreram.
Mas um e o outro, de alguma forma, já tinham abalado naquela tarde de maio.
Estão sepultados ao lado do filho.
Sepultados muito perto das casas onde vivem a Liliana e o Diogo, os pequeninos que pararam de andar de bicicleta quando se arrepiaram com os gritos da avó no meio da rua de uma aldeia perdida de Sula.
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