Cheguei a este ofício quase adolescente, fascinado com a arte dos sonoplastas. Elas acendiam uma luz dentro de cada voz e essa luz, lá na casa das palavras que a rádio é, (apesar de tudo ainda é), permitia a cada voz criar estremecimentos num outro apenas pressentido. Esse outro a quem chamávamos “ouvinte” era um ser fantasmático, nesses dias antes das sondagens, antes dos estudos de audiências, antes do império da velocidade. Dizíamos “senhor ouvinte”, fazíamos vénias com a voz grave porque nesse tempo a rádio era um lugar de vozes graves, sentadas numa misteriosa, mágica obscuridade. Saíam as vozes graves, vozes de rádio, das gargantas de graves criaturas que sabiam respirar pelo diafragma. O que em muitos desses velhos faroleiros de poltrona fascinava o adolescente que eu era resumia-se a isso, à descoberta da clareira do bosque encantado que um estúdio de rádio foi para muitos de nós enquanto não começaram a pendurar ecrãs de televisão nas paredes dos estúdios.
Aprendi com esses mais antigos a exercitar uma curiosidade inesgotável, a couraçar o medo do ridículo, mas não os trabalhos do diafragma. Vi um desses homens gargarejar claras de ovo para aclarar a voz, pressenti que as vozes de muitos se lhes escapavam no fim dum parágrafo sem alma. Salvei-me da crença, ainda um pouco prevalecente, de que a voz grave condimentada por algum traquejo de gramática e bem colocada era suficiente para acalmar as fúrias de um qualquer deus hertziano e conquistar muitos e estimados ouvintes.
Até que, certa vez, deixei-me de missas em altares de luz oblíqua e fiz-me aos caminhos, com um pesado gravador de fita a tiracolo. Essa urgência de vento e de outras vozes, coincidiu com o facto de se me ter revelado a importância não tanto já das vozes dos meus companheiros de ofício, mas do que elas transportam e do que elas interpelam, das outras vozes que elas convocam. Porque os da casa das palavras descobriram que o trânsito das vozes é nos dois sentidos, que entram outras vozes pelas janelas, que o estimado ouvinte não é uma instância muda, porque se não tivermos, nós, os da rádio, uma apetência para a escuta das vozes de outros, da voz do outro, não saberemos que uma espécie de olhar vai dentro da nossa voz, que a nossa voz ou é táctil ou não vai além de um gargarejo treinado no diafragma.
Envolvidos na teia das tantas vezes áridas palavras que povoam as rádios e as televisões, cabe-nos tratar as palavras como a mais bela matéria inflamável, na sua voraz veracidade, na sua veraz voracidade. Somos o que dizemos, somos como dizemos.
As redacções já foram habitadas por cultores da palavra, jardineiros da palavra. Entretanto, o vocabulário encurtou nas mangas e empobreceu. O jargão passou a ser estruturante na comunicação, as palavras em uso (foco, impactante, implementar, resiliência) perderam-se de um antigo fulgor. Tudo é depressa, em nome de duvidosas noções de eficácia. E se é depressa, não é urgente.
A urgência de agora deveria ser para a lentidão. Para a lenta descoberta do que o olhar do outro acrescenta ao nosso.