1.
Estava à porta do Hotel das Artes, no Porto, num final da manhã da semana passada, quando fui abordado por um homem que se arrastava.
Assustei-me por estar dentro dos meus pensamentos, absolutamente distraído.
Desculpe, perguntei sem perguntar.
Eu e que lhe peço desculpa. Sou um sem-abrigo e gostava de lhe pedir uma ajuda.
Respondi-lhe instantaneamente que não tinha dinheiro, que não tinha forma de o ajudar.
O sem-abrigo desejou-me um Bom-Natal e prosseguiu no seu caminho lento e arrastado.
2.
Tinha no bolso 25 euros.
Podia ter-lhe dado, se quisesse.
E ao vê-lo a andar tão lentamente, com os pés tão visivelmente magoados, ao vê-lo a arrastar-se pela Rua do Rosário, pensei em acelerar o passo para lhe pedir desculpa.
Meu amigo, tome 20 euros e gaste hoje numa refeição que lhe apeteça – perdoe-me por lhe ter dito que não tinha quando tinha esta nota.
3.
Mas não o fiz.
Fiquei parado, paralisado, a pensar se ia ou não ia.
Não fui, raramente vou.
E a sua voz continua nos meus ouvidos.
“Um Bom-Natal”.
Um triste desejo de boas festas, uma tristeza funda nos olhos, tão funda como a impossibilidade de poder caminhar sem se colar às paredes.
Para onde vai?
Onde dorme?
Quem era a sua família?
Que memória tem da mãe ou do pai?
E dos presentes da infância?
Terá tido algum Natal?
Brincou com carrinhos, foi a cinema, apaixonou-se, casou?
Que mortes sofreu, o que o levou para a rua?
4.
Não sei se te expliquei bem.
Mas a voz daquele homem não me sai da cabeça.
A voz e os seus olhos com lágrimas por cair.
Mais as pernas arqueadas e os pés apodrecidos.
E uma enorme educação quando agradece aos que, como eu, não tiram as mãos dos bolsos mesmo quando desejam tirar as mãos dos bolsos.
Será que ele é real?
Ou será que me foi colocado no caminho para que eu percebesse o quanto me falta para ser digno?
Texto e programa de Luís Osório
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