Trago uma proposta de exercício que talvez fortaleça a capacidade de decifração e de articulação de sinais quotidianos do andamento do mundo, através da leitura de um jornal. Talvez a proposta permita, sem uma metodologia rígida, ir além do descuidado e rápido folhear dos títulos mais garridos. É uma proposta para leitores mais desatentos ou desligados, aqueles a quem basta a rama da actualidade ou a actualidade rameira. No fundo, proponho aos leitores mais preguiçosos de jornais que repliquem, na sua relação frívola com o jornal diário, a experiência enriquecedora e, ainda por cima, divertida, dos alunos do 9º e do 12º anos do Agrupamento de Escolas de Cristelo, no concelho de Paredes, hoje relatada no JN.
Conta a reportagem de Mónica Ferreira o entusiasmo com que os alunos envolvidos no projecto MicroMundo se transformam em “verdadeiros cientistas”, ajudando em ambiente laboratorial “na busca de um novo antibiótico”, orientados por alunos universitários. Os alunos, “vestidos com batas brancas e de luvas”, conta a repórter, “trabalham nas bancadas do laboratório, analisando as amostras de solos que trouxeram de casa, na esperança de obter um resultado promissor para a criação de um novo antibiótico”. Uma aluna disse: “Foi incrível, descobri emoções que não tinha (…) e percebi que, se calhar, posso ter um futuro promissor nesta área”. E outra aluna: “Foi muito divertido, foram aulas diferentes que nos ajudaram a conhecer mais. Sentimo-nos uns cientistas”.
Regressemos à minha proposta de exercício. Vamos, jornal adiante, pescar outra notícia, outra reportagem, que dialogue com esta, que abra, com esse diálogo, uma linha de reflexão. Mal não faz, favorece a literacia, ajuda a encadear fios que pareciam soltos.
Meto os dedos e os olhos ao caminho. Vinte páginas adiante, no mesmo JN de hoje, a notícia retirada de um estudo do Banco de Portugal ontem divulgado: “Só 11% dos filhos de pobres chegam ao Ensino Superior”.
O estudo sobre a transmissão intergeracional da pobreza em Portugal conclui que a educação é uma espécie de via verde da má sorte.
O leitor de jornais mergulhado neste exercício, neste divertimento sério, tenderá a temer que o entusiasmo de Nadine e de Diana, as jovens do secundário de Cristelo, Paredes, venha a arrefecer no caminho estreito que possa esperá-las adiante.
Seria imperdoável. Até porque estamos muito precisados do antibiótico que elas se propõem criar, com tanta determinação.