O livro “Diplomacia Todo-o-Terreno. Jacarta 1999, o Processo de Timor-Leste”, recentemente editado, é muito mais do que uma longa entrevista da jornalista Bárbara Reis a Ana Gomes. E se fosse já não seria pouco. Na verdade, já seria muito. Porque, ambas, a jornalista que em cinco anos de correspondente do Público em Nova Iorque não perdeu de vista o processo timorense, a tal ponto que viria a ser, na fase imediatamente anterior à independência de Timor-Leste, porta-voz de Sérgio Vieira de Mello e a diplomata a quem Jaime Gama incumbiu de chefiar a secção de interesses de Portugal na Indonésia quando Xanana ainda estava preso, têm uma leitura privilegiada do nascimento de uma nação. Ambas estiveram por dentro do processo timorense, conheceram o pensamento dos grandes protagonistas, dos heróis e dos pusilânimes, dos ardilosos e dos que nada tinham na manga senão o mais apetecido dos trunfos, o desejo de liberdade.
O que a entrevistadora notável e a diplomata destemida, para quem a palavra “logo” quer dizer “agora, já”, e não “mais tarde”, o que ambas fazem neste livro é muito mais do que uma revisitação do processo que conduziu à independência de Timor, unindo as pontas soltas, fazendo luz sobre tanto que permanecia na penumbra. Neste livro, perguntas e respostas tecem uma teia luminosa sobre os factos para que remetem e sobre os seus bastidores. A cada página surgem episódios, por vezes desconcertantes, virando do avesso a imagem que construíramos de um dado protagonista.
Esta é uma abordagem rigorosa na qual a diplomacia não cede ao salamaleque nem ao croquete. Isso permite que Ana Gomes tenha criado laços de confiança com Ali Alatas que permitiram reaver a casa onde funcionara a representação portuguesa em Djacarta, antes do corte de relações com os indonésios. A casa estava fechada, a chave em poder dos holandeses que não sabiam localizá-la. Quando foi reocupada, mantinha nas paredes dois velhos escudos portugueses e estava degradada, rodeada de um enorme matagal. O que Ana Gomes diz de Ali Alatas (a quem considera um bom diplomata) só pode ser dito por quem não observou a Indonésia com óculos a preto e branco. Isso explica o olhar tão próximo de um território e da sua História e da sua Cultura e do que nesse território testemunha cinco séculos de presença portuguesa. Esse olhar é o nosso cicerone no documentário “A Minha Indonésia” que a RTP2 exibiu recentemente.
O livro permite-nos “ler” pela primeira vez alguns dos muitos telegramas secretos que Ana Gomes expediu de Djacarta para o MNE, em cujo Arquivo Histórico-Diplomático foram ganhando pó. A mulher que esticou, muitas vezes, a corda da História conta que, quando o seu colega Afonso Malheiro, que redigiu boa parte dos telegramas, mostrava o receio de que ninguém, nas Necessidades, lesse o que escreviam, lhe respondia: “Não te preocupes, estamos a escrever para a História! Alguém nos há-de ler um dia!”. Sinto-me privilegiado, ao mergulhar neste livro que não é para ler, mas para devorar. E isso agradeço muito a Bárbara Reis e a Ana Gomes.