Quem atua num palco ao ar livre à hora em que o sol começa a desaparecer na linha do horizonte sabe que, além da música que ali ganha forma e do aparato de luzes e vídeo que possa haver em cena, aquela ocasião conta com algo maior que confere ao concerto um dado extra que junta ao momento. O progressivo apagar da luz do sol, envolvente, e o focar das atenções, canção após canção, nos detalhes que a iluminação do palco vai valorizando, criam um percurso de transformação que tem na música o seu fio condutor. Foi assim com a atuação dos Bandua, dupla que junta Edgar Valente (que há um ano aqui tinha passado também com os seus Criatura) e Tempura the Purple Boy, que o MED 2023 acolheu na passagem da tarde para a noite, no Palco Chafariz, que encontramos no largo em frente à muralha do velho castelo de Loulé. Se o nome da banda sugere desde logo uma carga de heranças – na sua raíz remete-nos para uma mitologia ibérica que precede a presença romana na península – a música e, depois, o palco, juntam depois a criação de pontes que tudo podem ligar. Na música de Bandua as heranças têm geografia beirã e olham para lá do tempo, escutando tradições, mas sugerindo adiante novos trilhos para as projetar. E aqui as sugestões levantadas olham para paisagens desenhadas por electrónicas, juntando ao canto (que evoca ecos populares) e ao adufe (e há um “mega-adufe” no centro do palco), arquiteturas que vão para além da ideia clássica da canção e definem novas formas que não escondem marcas do tempo presente que não ficam longe do que habitualmente se designa por downtempo, espaço que tem na Berlim contemporânea uma das suas capitais criativas. Era já assim em disco. E se de 2022 nos chegou uma primeira fixação destas visões (agora com edição em CD e, possivelmente, o vinil mais adiante), em palco as canções ganham um corpo ainda com mais liberdade, alargando linhas, desenhando ambientes. O alinhamento do concerto coincidiu com que acontecia no mundo ao redor do palco. E no momento em que Edgar Valente anunciou que iam tocar novas canções ainda inéditas, a luz começou, discretamente, a apagar-se dos céus, passando o palco a ser dominado pelos projetores que, sobre os dois músicos, agora pulsavam ao som de batidas mais insistentes. Se alguma força maior ali havia em volta, o certo é que desceu sobre o palco para levar as sensações que dali brotavam ainda com mais intensidade. No final saía daquele momento uma satisfação que tanto tem de prazer no reencontro como na descoberta e que, de certa forma, caracteriza a alma de um festival como o Med, que parte precisamente desta ideia de criar encontros com músicas de todo o mundo (nas suas mais variadas tradições) e as materializa num espaço comum, num tempo (o presente) em que, aqui, as podemos partilhar.
A atuação de Bandua representou, está visto, um dos momentos altos do segundo dia do festival que, logo ali, naquele mesmo palco, a seguir juntou o DJ e produtor italiano Nicola Conte (que se fez acompanhar pela cantora britânica Zara McFarlane que colabora em algumas faixas do seu novo álbum). A noite no Palco Chafariz terminaria mais adiante, com Pedro Mafama, que lançou já pelo palco acima alguns passos evidentes do que será a sua visão para a música depois da importante etapa de afirmação de identidade autoral (e interpretativa) que nos deu a escutar no álbum “Por Este Rio Abaixo”.
A diversidade marca sempre qualquer dia de palcos no MED. E este ano são 11 os palcos com programação diária. Além do Palco Chafariz o centro histórico de Loulé acolhe ainda espaços de grandes dimensões nos palcos Castelo, da Cerca e da Matriz, aqui junto à igreja que acolhe, por sua vez, o Med Classic. O pátio do velho Hamam do século XII agora musealizado é outro dos palcos mais concorridos, assim como o é o que está instalado dentro do velho Café Calcinha, espaço com tradição na história de Loulé. Há ainda um espaço especificamente destinado ao jazz e, depois, entre cruzamentos e pequenos largos, encontramos ainda os palcos Mercado, Arco, Bicas Velhas. Foi por todo este cenário, cujos pólos estão ligados pelas estreitas ruas do centro histórico, que na noite de sexta nos cruzámos com a música dos japoneses Tomoro (com diálogos para percussão e flauta), o coletivo luso-canadiano Jean Christian et Le Quatour das Rêves Enfouis, a dupla definida pela guitarra portuguesa de Ricardo Martins e a harpista Helena Madeira (juntos respondem como Carpideira), num sem fim de acontecimentos entre os quais se destacaram ainda as propostas para uma nova canção com alma escutada no Alentejo pelos Monda, os cruzamentos de experiências dos marroquinos Aywa, os italianos Bandadriatica e, ainda, o reggae do jamaicano Kabaka Pyramid e a mestiçagem, com berço na cosmopolita Barcelona, de La Sra. Tomasa.