Ao terceiro dia em Cem Soldos, com termómetros a roçar os 38ºC, é imperativo prevenir insolações. Com isto em mente, os veraneantes que se juntaram pelas 15h30 no Palco Giacometti mereciam uma condecoração – e receberam-na na voz de Velhote do Carmo. “Vocês são grandes guerreiros”, disse o músico e fotógrafo cujo nome artístico – seleção de apelidos do pai e da mãe – não corresponde à realidade.
Aparentemente novato mas com anos de experiência, acumulada em bandas como Zanibar Aliens, não surpreende que saiba montar um espetáculo – e fidelizar o seu público. Entre o EP “Páginas Amarelas” e a antevisão de uma nova fase artística, pelos teclados retro e pelo rock mais sorridente, a roçar o existencial sem perder a ginga nem a leveza. Houve um repto para abanar a anca – e ninguém se recusou ao trabalho.
O canto para todos
Trabalho? Só será apropriado, portanto, falarmos do Coro das Mulheres da Fábrica. O trabalho é a polifonia feminina popular, cantada por mulheres da Região Centro, mas não só. “Somos todas mulheres, de todas as idades, de todos os lugares e países, do Brasil. Muitas não sabiam cantar, nem sabem” – pausa para risos – “mas não faz mal: o que importa é cantar” (continuam a ecoar as palavras de Diana Combo na primeira tarde de todas, no sentido de tornar obsoleta a noção de cantar mal).
Vozes treinadas para o uníssono, entoando canções em que a história é invertida: em vez de contarem as desventuras e os tormentos de mulheres portuguesas que não viviam em liberdade: agora, passam à porta de quem quiserem, encetam namoros e não se envergonham de os assumirem perante a família. “O coração manda”, cantou-se em coro; no Palco ao Adro, antes de seguir a procissão para o Largo do Rossio, que acolheu um círculo gigante de canto.
emmy Curl também negociou com o público essa energia, por exemplo, na introdução a “Botar Água na Vinha” – um dos singles do álbum “Pastoral”, o centro de gravidade desta atuação no Palco Giacometti-INATEL. Curl abriu mão das projeções digitais que definem este universo ao vivo, mas recorreu aos serviços de uma florista de Tomar para o traduzir em natureza. Uma comunhão entre o orgânico e o eletrónico, entre o som cosmopolita e a raiz transmontana, pautaram mais um concerto a que ninguém parece ter faltado: os espectadores concentraram-se não só no Largo São Pedro, como também nas ruas que lá confluem, ilustrando o quão esgotado estava este terceiro dia.
O baile prolonga-se
Daí em diante, tornou-se obrigatória a pontualidade – tal como sempre é, pelo início da tarde, no Palco Carlos Paredes (felicidades para quem conseguiu ouvir a guitarra portuguesa de Luísa Amaro). Seria a diferença entre ver e não ver Expresso Transatlântico no Palco Zeca Afonso; embora ouvir não esteja em causa, convém ver o grupo de Sebastião Varela, Rafael Matos e Gaspar Varela, que age não só como guitarrista, mas também como mestre de cerimónias, conduzindo o público a extremos de euforia – e saltando para o meio deles, num crowdsurf heróico.
É demasiado cedo para se falar de “Ressaca Bailada”, mas é este o prato forte do concerto, um recital de fado tocado e sobretudo dançado a diferentes velocidades, de janelas escancaradas para os ritmos do funaná, do samba, do blues. O funk dominou o recinto pouco depois, com laivos de gospel, por via de Silk Nobre: uma ode à pulsação da música negra, que teve um dos pontos altos em “Change”, tema com o qual concorreu no Festival da Canção 2024. Também do universo eurovisivo mas rumo a uma pop folclórica que vai beber ao Médio Oriente, Edmundo Inácio esteve no Palco Zeca Afonso, antes da nova canção interventiva de Cara de Espelho, o supergrupo que fechou nesta noite o Palco Lopes-Graça.