Ao longo de março, a Antena 1 tem assinalado o centenário de Celeste Rodrigues, entre reinterpretações de temas seus e testemunhos de quem a conheceu na intimidade. Mas a operação Celeste 100 não se cinge à rádio, ambicionando também desenvolver a informação disponível online sobre este ícone do fado.
Em parceria com a Wikimedia Portugal, a Antena 1 promoveu na tarde de 15 de março uma primeira sessão de trabalho sobre Celeste Rodrigues. Uma tertúlia em que estiveram presentes o realizador Diogo Varela Silva, neto da fadista, o guitarrista Pedro Castro e os fadistas Hélder Moutinho e Teresinha Landeiro, juntamente com João Carlos Callixto e Pedro João Santos da Antena 1.
Uma carreira tão longeva quanto a de Celeste Rodrigues é uma espada de dois gumes: se nos oferece múltiplos ângulos para explorar, também torna a escolha quase impossível. Para a sessão inicial, os convidados da Antena 1 e da Wikimedia Portugal decidiram-se por um objetivo: documentar o percurso da fadista pelos palcos nacionais e internacionais, entre casas de fado e a vida de estrada.
À data da sua morte, em agosto de 2018, Celeste Rodrigues era a fadista mais antiga em atividade. Diogo Varela Silva — coordenador da exposição e autobiografia Celeste no Museu do Fado, em Lisboa — descreve-a como símbolo de “simplicidade e entrega total”, num equilíbrio entre um vasto palmarés e uma postura “anti-vedetismo”.
O começo meteórico nos anos 40
Embora tenha sido descoberta pelo empresário José Miguel numa casa de fado, cantando na Adega Mesquita, a sua estreia profissional dá-se no Parque Meyer, no então apelidado salão Casablanca e atual Teatro ABC. O ano era 1945, data que também marca a primeira internacionalização de Celeste, contratada para atuar no principal music hall de Madrid. Era na Gran Via que se situava o Pasapoga, onde o êxito de Celeste obrigou a prorrogar o acordo: mais do que a quinzena inicialmente combinada, a fadista ficaria por dois meses e meio.
Depois de Espanha e de uma breve passagem pela ilha da Madeira, Celeste percorre salas pelo Brasil, como o mítico Casino da Urca, no Rio de Janeiro. Assim passa o ano de 1946, em digressão com a opereta Rosa Cantadeira e a revista Boa Nova, na companhia do maestro Frederico Valério, do cantor Luís Piçarra, da irmã Amália Rodrigues, dos atores Ema de Oliveira e Humberto Madeira, e do encenador Manuel de Santos Carvalho.
De regresso a Portugal, investe o resto da década de 1940 no circuito alfacinha. O Café Latino, a Urca, o Marialvas, a já familiar Adega Mesquita e também a Adega Machado são algumas das casas de fado em que se estabelece — bem como a Tipóia, onde ainda se encontra na viragem da década. Aguardava Celeste mais um período de alta visibilidade, aquém e além fronteiras.
Entre A Viela e a National Geographic
Ao longo dos anos 50, Celeste Rodrigues potencia a sua visibilidade não apenas num palco material, mas também através dos ecrãs televisivos. De facto, torna-se uma das primeiras vozes no período de testes da RTP, em 1956, no teatro da Feira Popular. Como asseverou a revista Álbum da Canção, Celeste foi mesmo “a primeira a enfrentar as câmaras, quando os estúdios do Lumiar passaram da fase de experiências para as emissões regulares”. Durante vários anos, essas imagens foram reproduzidas nas emissões especiais de aniversário da RTP.
Findo o seu período na Tipóia, Celeste Rodrigues rumou à Praça da Alegria, para cantar na casa de fados de Márcia Condessa. Em 1957, tal como Condessa, tornou-se uma fadista proprietária do seu próprio estabelecimento: o Museu do Fado caracteriza A Viela como “um espaço privilegiado para a convivência de poetas, intelectuais, cantores e de longas tertúlias”, que permaneceria na Rua das Taipas até 1961, quando desiste do empreendimento. Volta a cantar pouco depois, na Parreirinha de Alfama, por conta de outra lenda do fado, Argentina Santos.
O território português nunca limitou os horizontes de Celeste: entre os anos 50 e 60, conhece algumas das principais capitais europeias, e enceta ainda uma digressão pelos EUA e pelo Canadá, com o fadista António Mourão. Em 1967, o precedente internacional de Celeste estendeu-se à televisão, quando a National Geographic produziu um documentário sobre pescadores bacalhoeiros (The Lonely Dorymen), em que a fadista interpretou os martírios, cântico tradicional beirão da Semana Santa. Tornou-se ainda a primeira fadista a cantar para a BBC, no magazine noticioso Panorama — programa que, dentro do género, é o mais antigo em exibição.
O êxito infindável de Celeste
Depois da estada na Parreirinha de Alfama, Celeste manteve-se nesse bairro, mais concretamente no Beco dos Cortumes — a convite do fadista João Ferreira-Rosa, para integrar o elenco da sua Taberna do Embuçado. Lá ficou 25 anos, fechando a década de 1970 com um período de seis meses na casa de fado O Poeta. Nos anos 80, regressa ao palco d’A Viela, já sob outra gerência, onde ainda voltará nos anos 90, depois do seu retorno à Taberna do Embuçado em 1994, por onde continua na década seguinte, passando ainda pela Casa de Linhares (anteriormente conhecida como Bacalhau de Molho).
Sem conhecer hiatos ou fiascos, Celeste Rodrigues continuou a colecionar palcos e países ao longo do século XX, que encera com concertos em Bruxelas, no Chipre, no Luxemburgo, em Amesterdão ou no emblemático Half Note Jazz Club de Atenas.
Todavia, na ótica de muitos daqueles que privaram com Celeste ou que acompanharam a sua carreira, o seu espectáculo definidor começa em 2005. Cabelo Branco é Saudade, com título de um fado eternizado por Alfredo Marceneiro, juntava Celeste a Alcindo de Carvalho, Argentina Santos e Ricardo Ribeiro.
Após a estreia no Teatro Nacional São João, no Porto, a produção encenada por Ricardo Pais e com direção musical de Diogo Clemente atravessa Lisboa (São Luiz Teatro Municipal), Braga (Theatro Circo) e outras cidades portuguesas — e faz ainda carreira global. Cabelo Branco é Saudade foi um êxito retumbante em salas como a Cité de la Musique, em Paris, ou o Teatro Mercanante de Nápoles — que, de acordo com o diretor, nunca teria assistido a tamanha apoteose nos seus dez anos de experiência.
Nos últimos anos da sua carreira, o Carnegie Hall de Nova Iorque, a Philharmonie de Luxemburgo, o teatro De Roma em Antuérpia e o Concertgebouw da Holanda são algumas das salas que recebem Celeste Rodrigues. Roterdão, Utrecht ou Ghent ajudam a compor os últimos quilómetros da rota internacional de Celeste. Despede-se desses voos em abril de 2018, no Town Hall de Nova Iorque, ao lado de Carlos do Carmo; em Portugal, o último palco que pisa é o Teatro Tivoli, no mês seguinte. Mas não seria correto terminar este texto sem devolver Celeste às casas de fado em que ergueu a sua voz: as últimas que tiveram a honra de a escutar foram o Café Luso e a Mesa de Frades.
Texto de Pedro João Santos
Este artigo foi concebido no âmbito do Wiki Loves Música Portuguesa, projeto que pretende enriquecer os artigos disponíveis na Wikipédia sobre artistas e obras musicais de Portugal. A Antena 1 é parceira deste projeto da Wikimedia Commons.
Saiba mais sobre a operação Celeste 100 aqui.