Chama-se Liniker de Barros Ferreira Campos, é natural de Araraquara (no interior do estado de São Paulo) e, aos 29 anos, não só é reconhecida como tendo sido a primeira artista trans a vencer um Grammy Latino, como ocupa, desde 2023, a 51.ª Cadeira da Academia Brasileira de Cultura, lugar que antes estava atribuído a Elza Soares. Depois de um percurso em grupo como Liniker and the Caramelows (com quem gravou dois álbuns, um EP e vários singles entre 2015 e 2020), Liniker estreou-se a solo em 2021 com “Indigo Borboleta Anil”, o tal disco que lhe deu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira e no qual, juntando figuras como Milton Nascimento, Tássia Reis, Tulipa Ruiz e contando ainda com duas orquestras, deu sinais de que era nome a seguir ainda com mais atenção no mapa da atual música brasileira.
Se o álbum (premiado) de 2021 sugeria a confiança numa promessa (de resto já sugerida na obra anteriormente gravada com os Camelos), o sucessor, “Caju”, editado há algumas semanas, revela um salto que nem os mais otimistas poderiam imaginar e revela-se coimo um dos títulos maiores que a música brasileira nos deu a escutar nos últimos anos. Com uma equipa alargada na produção (onde voltamos a encontrar Gustavo Ruiz e Feijuca), Liniker consegue traduzir num mesmo álbum a capacidade em expressar um eu, o seu aqui e o seu agora. Traduzindo ecos de episódios românticos, reflexões, anseios e outras emoções num conjunto de letras claramente pessoais (mas transmissíveis), “Caju” convoca musicalmente uma série de rotas e destinos da música brasileira, criando um ponto de confluência que junta a cultura R&B contemporânea (“Caju”, “Tudo” ou “Papo de Edredom”) ao sentido eloquente do classicismo da MPB orquestral (“Veludo Marrom” é candidata a canção do ano!), num terreno alargado que escuta ainda ecos do pagode (“Febre”), do jazz (escute-se notável parceria com Amaro Freitas, e a dupla Ana Caetano e Vitória Falcão em “Ao Teu Lado”), do samba rock (“Mayonga”), do brega (“Pote de Ouro”, com Priscila Senna), do disco sound (“Deixa Estar”, com Pablo Vitar e Lulu Santos), de uma pop com travo soul (“Popstar”), da house (“So Special”, com o duo Tropkillaz) ou da cultura afro-caribenha (“Negona dos Olhos Terríveis”, ao lado do coletivo BaianaSystem).
“Caju” é um feito notável, conciliando todos estes mundos e referências sob uma voz comum (e às suas palavras). Canto e palavras cantadas garantem, afinal, a coesão e, sobretudo, um sentido de verdade autoral num disco maior que hoje faz de Liniker uma figura de proa da música brasileira. Bem gravado, bem cantado, este é um daqueles raros álbuns que conseguem encontrar no assimilar de histórias e referências as pistas para a construção de um presente cativante que abre possibilidades de futuro. Liniker conseguiu, como ela mesmo canta na canção-tema, polir “a joia rara”. Pois não se conta a história musical de 2024 sem este magnífico “Caju”.
Texto de Nuno Galopim
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