Se os primeiros anos com um contrato discográfico tinham sido lentos e longos, sem que nada de facto se materializasse, a breve e fulminante obra que António Variações gravou e levou a disco entre 1982 e 84 (o ano da sua morte) foi suficiente para o inscrever como uma das maiores e mais unânimes entre as grandes referências na história da música popular entre nós. De facto, o período que separou 1978 (o ano da assinatura do acordo com a editora Valentim de Carvalho) e o momento da edição do single de estreia Estou Além/Povo Que Lavas No Rio, em 1982, assistiu a uma divisão de opiniões internamente, sem que uma resposta definitiva surgisse quanto à eventual opção por um destino artístico, se por um repertório mais popular, se pelos caminhos do rock (devendo notar-se que, entre nós, só depois de 1980 este segundo começou a ser um trilho discograficamente mais relevante para toda a indústria discográfica local). Uma primeira sessão em estúdio, ainda no final dos anos 70, gravada tendo em vista a hipótese popular nunca foi até hoje tornada pública. Uma segunda, por volta de 1981, da qual nasceram, Toma o Comprimido e Não me Consumas, que só tiveram finalmente expressão fixada em disco postumamente, numa compilação lançada em 2006, permitiu-lhe contudo fazer estreias na rádio e televisão, momentos que ressoaram ao ponto de acelerar definitivamente uma opção: António Variações faria caminho, em disco, em sintonia com o emergente boom que se vivia na cena pop/rock portuguesa. Caminho, de resto, já em parte sugerido quando, nos concertos desse tempo, se apresentava com a sua banda de suporte (na qual a tal divisão original de possibilidades ainda ecoava, apesar da então já evidente inflexão mais urbana).
Em 1982 o single Estou Além, uma canção pop marcada por um arranjo onde se destacava a presença das eletrónicas – que lhe garante um lugar pioneiro na história da pop electrónica entre nós, no mesmo ano em que os Da Vinci editavam Hiroxima (Meu Amor) – e que juntava ao cartão de apresentação uma versão nada canónica (mas visionária) de Povo Que Lavas No Rio (da dupla Pedro Homem de Melo / Joaquim Campos) que saudavelmente dividiu opiniões, foi a confirmação necessária face ao mapa de possibilidades pop que António Variações teria pela frente.
Tal como havia acontecido no single de estreia (produzido por Nuno Rodrigues), a estúdio foram chamados músicos para dar forma às ideias registadas nas cassetes caseiras nas quais António Variações registava as ideias para as suas composições e letras. Dessas maquetes caseiras, algumas só com voz e palmas, outras com caixa de ritmos, algumas com um teclado, outras mais ensaiadas com banda, surgiram canções que ganharam forma mediante descrições e sugestões do próprio Variações, contando depois com as contribuições de José Moz Carrapa (assinava então Zé Carrapa), Tóli e Vítor Rua, estes dois então elementos dos GNR. Aos arranjares juntavam-se ainda outros mais músicos, entre os quais Manuel Faria, Zé da Ponte ou José Carias, do esforço conjunto nascendo um alinhamento de Anjo da Guarda, álbum que ora celebrava visões pop luminosas, marcadas pelo muito peculiar sentido de humor de um observador de comportamentos e heranças dos jogos de palavras dos ditados populares – como O Corpo É Que Paga, É Pr’a Amanhã…, Quando Fala um Português, Linha-Vida ou Onda-Morna – ora apontava a azimutes bem distintos, por mergulhos mais introspectivos pelas profundezas da alma – Sempre Ausente, Anjo da Guarda e Visões-Ficções (Nostradamus). Pelo caminho voltava a surgir Estou Além, deixando de fora a canção imortalizada pela voz de Amália que tinha gravado no ano anterior. Esta, curiosamente, surgiria em destaque ainda mais evidente em Voz-Amália-de-Nós, canção que a encara, mais do que uma mera referência pessoal, como um marco de toda uma cultura, a ela dedicando de resto todo o álbum, escrevendo na contracapa: “À Amália que sempre me deu e fez sentir a importância duma verdadeira identidade (no fundo, a ideia central que todo o álbum traduz).
Título maior da história discográfica portuguesa, o álbum de estreia de António Variações (que precede em um ano o derradeiro Dar & Receber) abriu-lhe portas a um patamar de visibilidade que, nos meses seguintes, e enquanto a saúde lhe permitiu, o levou a palcos por todo o país. Depois da sua morte – e do vazio inicial de atenções a que foi votado por algum tempo – coube a versões de canções suas o papel de iniciar um processo de reencontro. Em 1987 Lena d’Água gravou Estou Além (que mais tarde conheceria outra leitura no seu disco gravado ao vivo no Hot Clube) e no mesmo ano os Delfins deram voz à Canção de Engate (do segundo álbum). Com o tempo surgiram mais leituras sobre Estou Além (uma delas por Isabel Silvestre, em 1993, outra pelas Amarguinhas, em 1995). A versão de Isabel Silvestre integrava o tributo Variações: As Canções de António, no qual outras canções do Anjo da Guarda conheciam novas vidas: Voz-Amália-de-Nós pela Resistência, É Pr’a Amanhã por Sérgio Godinho, Sempre Ausente pelos Delfins, O Corpo é Que Paga segundo os Sitiados, Anjinho da Guarda na voz das Três Tristes Tigres e ainda Visões-Ficções na abordagem dos Mão Morta (o álbum inclui ainda participações dos Madredeus, Ritual Tejo e Santos & Pecadores). Entre as histórias de vida das canções de Anjo da Guarda há mais episódios, que passam pela versão de Visões-Ficções por Márcia com os Dead Combo (no segundo volume de Voz e Guitarra), pelo ponto de vista de Lina, juntamente com Raül Refree, face a Voz Amália de Nós ou até mesmo as versões que os Humanos apresentaram nos seus quatro concertos, fixadas depois no álbum Ao Vivo de 2006. Nesse mesmo ano, a compilação já acima referida, A História de António Variações (Entre Braga e Nova Iorque…), juntava a algumas destas canções excertos das maquetes caseiras do próprio António. Estes são, portanto, apenas alguns episódios de um cancioneiro que ainda terá, certamente, muito que cantar.
Texto de Nuno Galopim
A edição desta semana do Gira Discos recorda algumas das canções desta etapa na carreira de António Variações, assim como versões assinadas por outros artistas.