Ao primeiro dia do BONS SONS 2024, Diana Combo abria o Palco MPAGDP (A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria) com um manifesto: descontinuemos a noção de “não saber cantar bem”. Aplica-se sobretudo ao contexto em que foi pronunciado – a escuta atenta de recolhas do Portugal rural, em que a emoção é capaz de derrubar a afinação -, mas também às vozes que se erguem no público de um festival, ou às criações com que somos confrontados – e que nos obrigam a confrontar ideias feitas, a santidade do nosso tão prezado gosto.
O segundo dia em Cem Soldos pauta-se por estas fintas ao preconceito, às esquadrias em que nos deixamos encerrar. Não é excessivo imaginar que boa parte dos bancos da Igreja de São Sebastião, por estes dias recipiente do Palco Carlos Paredes, é preenchida por estreantes na obra da artista Joana Guerra. Cantautora, multi-instrumentista e produtora, propôs no início da tarde uma abordagem experimental e destemida ao violoncelo, o seu fiel amigo: “Chão Vermelho”, disco de 2020 representado neste concerto, é uma boa apresentação das texturas que deriva da sua voz e das cordas, de que extrai todo o tipo de feitios e nervuras.
Tradições e meditações
Esse é também o desígnio de Ambria Ardena, uma dupla transmontana que passou pelo estúdio da Antena 1 após a sua performance no Palco MPAGDP. Não se trata de reviver tradições, mas de dar continuidade à herança de avós e bisavós – uma missão a que o público do BONS SONS adere, mesmo perante o sol abrasador. Foram as condições climatéricas que também se fizeram sentir, um pouco antes, no concerto de Malva, que as combateu com uma brisa de pop confessional, quieta, entre a ternura e o assombro. Em palco, contou com a participação especial de Bia Maria, que subiu ao mesmo palco em 2022.
A tarde prosseguiu, entre outras atividades, com a “Krump Session” de Dougie Knight, no Palco ao Adro: demonstração de uma dança oriunda das comunidades negras e latinas de Los Angeles, que se introduziu em Portugal em meados dos anos 2000. Vaiapraia sacudiu o Palco Giacometti-INATEL com os seus acessos de punk; também cortante e disruptivo prometia ser o projeto que fechou a tarde no anfiteatro do Palco Zeca Afonso.
O nome aflora algo cortante e disruptivo, mas os Estilhaços de Adolfo Luxúria Canibal, António Rafael, Henrique Fernandes e Jorge Coelho ferem com uma sensibilidade maior do que o expectável. Ao fim da tarde, o Palco Zeca Afonso recebeu um verdadeiro recital de poesia musicada, um público sob a batuta de Adolfo – que decidia a intensidade da paisagem sonora com cada verso interpretado. Os mais atentos foram recompensados com uma comunhão gentil, com pontos de dureza, que agradeceram com uma ovação de pé.
Alentejo e Abril presentes
Logo a seguir a Solar Corona, num formato de electro-rock insistente e imprevisível (Elektrische Maschine), os Adiafa fizeram a festa no Palco Lopes-Graça. Uma carta de amor ao Alentejo, fiel não só ao seu repertório, mas também ao seu humor (“Um alentejano a usar in-ears? Esta nunca tinha visto!”). “Estrala a bomba”: já sabemos ao que vamos, o delírio no largo de Cem Soldos, com “As Meninas da Ribeira do Sado” a ecoar por todo o recinto, embora outras canções tenham rivalizado com este volume de aplausos, como o aljustrelense “Hino dos Mineiros”. E, claro, nota especial para o agradecimento à Antena 1 e a Ana Sofia Carvalheda, produtora da operação BONS SONS.
Palco Zeca Afonso: se o nome não fosse suficiente para o consagrar como o palco da revolução, certificaram-no assim o concerto teatral “Quis Saber Quem Sou” no primeiro dia, e Gisela João no seguinte. “Era para ser um concerto diferente”, justificou-se a fadista, “mas estas palavras precisam de ser cantadas; estes autores precisam de ser ouvidos. A minha geração não sabe sequer o que é viver em ditadura.”
Luzes brancas e vermelhas ladearam Gisela, que dos seus discos retirou apenas quatro temas – “Louca”, “Canção ao Coração”, “Malhões e Vira”, “Meu amigo está longe” – para deixar o holofote recair sobre as canções de Abril. Arranjos de cara lavada, despidos sem perder poder, deram vida a “Que Força é Essa Amiga” (Sérgio Godinho via Capicua), “Inquietação” de José Mário Branco, “Os Bravos” de José Afonso e tantos outros cravos a florir.
Pedro Miguel Ribeiro, o nosso repórter no local, continua a investigar o recinto – e visitou a feira. Veja o vídeo e volte a ouvir a emissão especial.