Antes de Elvis Presley e dos demais heróis do rock, da pop, da chanson, do rhythm and blues ou de tantos outros géneros que brevemente iriam mudar a história da música popular à escala global, os primeiros anos de vida do LP (disco de longa duração, daí a expressão long playing, surgido no mercado em 1948) deram particular relevo os universos da música clássica, do jazz, dos musicais (do palco ao cinema) e a géneros peculiares, um deles acabando depois por ser designado como exotica, designação que deu título de um álbum de 1957 de Martin Denny, um dos nomes mais ativos neste universo. Apesar das muitas referências culturais habitualmente em jogo – sobretudo oriundas das orlas e das ilhas do Pacífico – esta música tinha mais de construção do que de expressão real de tradições e geografias. Exotica não é, portanto, algo que se possa entender como uma primeira manifestação discográfica dos cruzamentos de culturas que depois entrariam em cena como world music… É mais uma construção de ficção. Uma fake music que tinha mais em comum com o modo como os filmes de Hollywood se tinham habituado a retratar outros tempos e outras culturas do que com processos de recolha etnomusicológica ou de um mais natural confronto de vivências e tradições com músicas de outros tempos ou outros lugares. As origens da ideia recuam a criações que surgiram uns anos antes de o nome ter sido fixado depois de usado no já referido álbum de Martin Denny. Em 1951 o também norte-americano Les Baxter gravara Ritual of The Savage, disco que cruzava elementos de outras músicas e outras geografias, acrescentando até sonoplastia “exótica” com sons de pássaros e sapos… Mas um ano antes, e com Les Baxter a bordo, um outro disco ensaiara horizontes para fazer dos anos 50 um terreno aberto a este tipo de visões. Era protagonizado por uma cantora de invulgar extensão vocal, dotada de um rosto de linhas cinematográficas e apresentada por uma narrativa de alma épica que a encarava como uma princesa inca… Chamava-se Yma Sumac.
A construção da personagem juntava mitologias que ora contavam que era descendente do último grande imperador Inca ora diziam que era uma dona de casa nova-iorquina que resolvera, pela música, dar outro rumo à sua vida. Na verdade Zoila Augusta Emperatriz Chávarri del Castillo (1922-2008), o seu nome real, era uma cantora peruana que começara a cantar na rádio em 1942 e chegou a gravar uma série de canções folk de passagem pela Argentina por esses dias. Com a família mudara-se para Nova Iorque em finais dos anos 40, começando ali a fazer carreira a bordo do Inka Taky Trio. E foi então que, através da Capitol Records, recebeu um convite para gravar a solo.
A sua estreia em disco como Yma Sumac fez-se em 1950 com um LP. Voice of the Xtabay apresentava seis composições de Moises Vivanco (com quem estava casada) e duas de Les Baxter, e revelava uma cenografia traçada num exotismo que conciliava uma interpretação à la Hollywood de um sentido de herança pré-colombiana com a presença de referências contemporâneas da música latina. A invulgar extensão vocal de Yma Sumac (que ultrapassa as quatro oitavas), que lhe permitia não apenas o canto mas também um desenho de vocalizações que se tornariam marca de assinatura, os arranjos luxuriantes para orquestra e uma presença variada de instrumentos de percussão, criava um alinhamento tão invulgar quanto sedutor. Diferente. Mas estranhamente intrigante. E desde logo capaz de seduzir atenções, valendo-lhe o cognome de “rouxinol dos Andes”…
Outros discos seguiram-se a Voice of the Xtabay, ora sublinhando essa carga de construção de visões dos Andes com alma hollywoodesca, em alguns deles visitando com maior protagonismo os espaços da música latina, que entretanto, cativara as pistas de dança ocidentais. Os discos eram acompanhados por textos que valorizavam a narrativa mitológica, juntando ao universo musical e plástico de Yma Sumac todo um conjunto de referências de tempo e geografia pré-colombiana: Legend of The Sun Virgin (1952), Inca Taqui (1953) e Legend Of The Jivaro (1957), neste último juntando à orquestra um “acompanhamento nativo”, como se lia nas notas na contracapa. Editado em 1954, Mambo!, gravado com Billy May e a Rico Mambo Orchestra, procurou levar à pista de dança de travo latino alguns sinais já explorados no disco de 1950. Editado em 1959 o álbum Fuego del Ande, novamente com Moises Vivanco, mas com a presença em estúdio da sua orquestra, ensaiou aproximações ao folclore andino, sem perder a dimensão mitológica em volta de uma voz que, nove anos depois de Voice of the Xtabay, estava já longe de representar o travo inesperado e exótico de outrora. Os sabores da surpresa tinham migrado para outros lugares… E a própria obra de Yma Sumac mergulhou, progressivamente, num caminho cada vez mais distante das grandes atenções.
Texto de Nuno Galopim
O álbum Voice of The Xtabay de Yma Sumac é revisitado no mais recentemente episódio de Duas ou Três Coisas, de João Lopes e Nuno Galopim.
Em 2022, por ocasião do seu centenário, o programa Gira Discos dedicou uma emissão especial a Yma Sumac e ao universo exotica.