1.
Vejo as fotografias do meu primeiro casamento e pareço outro.
Faltavam três anos para o fim do milénio e quatro anos para a morte da avó Joaquina, a mãe da minha mãe, a mulher mais importante da minha infância e juventude.
A avó não esteve no copo de água – disse-me que não se sentia bem em estar, não tinha roupa, nunca usara sapatos como as outras senhoras, não sabia a diferença nos talheres, tinha vergonha.
Chorei quando mo disse.
“Avó, não tem importância nenhuma, o que interessa é que estou lá e sou o teu menino”.
2.
Foi à cerimónia de assinatura com a notária, mas não ao jantar.
Eu tinha 27 anos e sempre vivera com ela e a minha mãe.
A avó Joaquina vivia em função de mim.
Alimentava-me, dava-me colo, comprava-me gulodices, punha o anel no prego quando comecei a ter namoradas e precisava de ir
ao cinema, acordava-me com o pequeno-almoço, ouvia-me os sonhos e domesticava-me a revolta quando esta se tornou minha amiga.
Com ela vivi tudo.
Com ela viajei sem sair do bairro.
Com ela vi as novelas, li-lhe livros, acompanhei-a nas idas ao patrão que lhe comprava soutiens que ela fazia na sua velha máquina Oliva.
3.
Depois do casamento saí de casa e fui viver com a Zé.
Telefonava-lhe todos os dias, mas não aparecia muitas vezes.
Tinha a minha vida, a Zé ficara grávida do André e a avó dizia-me sempre que estava bem, que não podia estar melhor, que eu não me preocupasse com nada, que vivesse a minha vida.
Mas eu sabia que ela deixara a tristeza entrar por o seu menino ter saído, que a sua vida deixara de fazer sentido como antes.
E eu, sabendo isso, não fiz o que deveria ter feito.
Não tentei sequer fazer o que era minha obrigação fazer.
E teria sido tão simples arranjar uma solução e trazê-la comigo.
Teria sido tão bom para mim ter-lhe oferecido a possibilidade de sorrir nos seus últimos anos.
Teria sido tão bonito vê-la a pegar todos os dias no seu bisneto mais velho.
Era o mínimo que eu poderia ter feito, mas não fiz.
Passamos pela vida e não fazemos, tantas e tantas vezes, o que precisamos de fazer, o que é justo, o que é sério.
E passamos a viver com o sentimento de culpa, com a angústia, com uma tristeza que não nos abandona.
Se tiveres a possibilidade não desistas dos que te amam, dos que se sacrificaram por ti, dos que te fizeram ser a pessoa que és.
Pode não ser fácil, mas acredita que a consciência tranquila não tem preço.
Texto e programa de Luís Osório
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