1.
Natércia foi o amor da vida de Fernando José.
E Fernando José o amor da vida de Natércia.
Ela era professora de matemática e ele militar.
Os dois mais de silêncio do que de exposição.
Os dois num amor discreto, mas sempre visível.
Casaram no Verão de 1970.
Ele já fizera comissões de serviço na Guerra Colonial e ela já dava aulas.
2.
Casaram e ele tornou à guerra, depois de Moçambique o inferno da Guiné.
Já era capitão e participava em reuniões de conspiração. Natércia ia sabendo de algumas coisas, Fernando José não lhe escondia o essencial.
Em 1974, as reuniões de conspiração tornaram-se mais sérias. Ninguém conhecia o seu marido por Fernando José, todos os seus camaradas ou subordinados o tratavam por Salgueiro Maia, os dois apelidos que ela resolvera usar depois do casamento, Natércia Salgueiro Maia, a mulher do capitão – assim ainda hoje é conhecida pelos vizinhos.
3.
Casaram em 1970 e viveram os dois as maiores alegrias e as maiores tristezas.
A alegria da conquista da liberdade, a tristeza da desilusão por tantas oportunidades perdidas.
A alegria por ter contribuído para que fossemos um país livre, a tristeza por tantos se terem esquecido dos que arriscaram a vida para que tal fosse possível.
A tristeza por não poderem ter filhos, a alegria pelos dois filhos que adotaram… amando-os como se tivessem nascido das suas entranhas.
4.
Vamos celebrar os 50 anos do 25 de Abril, parece mentira.
Celebrar o nosso grande herói, o que não quis nada em troca, o que depois da revolução feita voltou para casa como se nada fosse, como se nada precisasse.
O que adoeceu com um cancro que o obrigou partir prematuramente com menos de 50 anos.
O que nesses dias do fim deixou uma carta a Natércia para que ela não se esquecesse de o enterrar numa campa rasa em Castelo de Vide, um buraco que se abrisse para caber o caixão mais barato que houvesse.
5.
Natércia está viva.
Continua a ser uma mulher bonita.
Discreta.
Absolutamente silenciosa e avessa a entrevistas ou exposição.
Como ele, o seu amor, um dos maiores heróis da história portuguesa.
Natércia está viva e mora em Santarém, talvez com vista para o quartel onde viu, por entre as frinchas dos estores, o seu marido partir para Lisboa numa madrugada impossível de repetir.
No seu sótão está tudo o que importa.
Recortes, fotografias, livros, revistas, cartas.
Quando ela o deseja encontrar, quando precisa de sentir a sua presença, é para lá que vai.
Natércia está viva.
Como ele, ali… onde ela o reencontra.
Texto e programa de Luís Osório
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