1.
Descemos ontem em família a Avenida da Liberdade.
Celebrámos os 50 anos e fizemo-lo sem palavras negativas, sem maus pensamentos, juntos pela ideia de que é possível juntarmo-nos mais, falarmos mais, sorrirmos mais, abraçarmo-nos mais.
2.
Eu e a Ana.
Mais os nossos seis filhos.
Juntos descemos a Avenida da Liberdade.
O André, o Miguel, a Leonor, o João, o Afonso e a Benedita.
Os meus, os dela e os nossos.
Os quatro netos do meu pai que partiu novamente para a clandestinidade. Talvez esteja em Paris a observar a mesa de Sartre e Beauvoir.
Ou a discutir com José Mário Branco o curso das coisas ou a almoçar com o seu melhor amigo, o inseparável Rúben de Carvalho.
3.
Descemos a Liberdade como se fosse Natal.
Com uma mesa posta para os que partiram e os que estão.
Com cravos da Celeste e este jeito de sermos tudo e o contrário: orgulhosos e temerosos, generosos e egoístas, revolucionários conservadores, solares e fadistas, marinheiros e velhos do Restelo.
Descemos com orgulho do país que nos moldou.
Com orgulho de onde viemos, dos que partiram, dos que falharam, dos que se cumpriram, dos que se sacrificaram pela liberdade, dos que foram torturados e humilhados, dos que agora há vergonha em falar e aplaudir.
4.
Descemos a liberdade na esperança de a voltar a erguer.
Contra uma certa direita que fala da liberdade com a boca cheia. Como se não tivessem existido os que a fizeram, os que lutaram por ela. Falam da liberdade sem o incómodo dos gritos na António Maria Cardoso, sem o incómodo das mortes e dos malucos revolucionários que lutaram na rua ao contrário dos que fizeram pela vidinha.
Mas também contra uma certa esquerda blasé.
Cosmopolita e de sucesso.
Que fala da vida cheia de certezas, que não gosta de histórias de superação, que detesta falar de amor, de histórias felizes, de coisinhas pirosas que nos afastam da verdadeira arte.
Gente que não faz a mais pequena ideia do sabor da injustiça, não faz ideia do que é ter fome, que fala de barriga cheia obcecada com o politicamente correto que ainda nos vai tramar a todos.
Descemos a Liberdade e queremos agora subi-la.
Descemo-la com os mortos e com os que ainda não nasceram.
Queremos caminhar juntos.
Queremos continuar a caminhar juntos.
Texto e programa de Luís Osório
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