1.
Gosto dos livros de João Tordo.
Gosto das suas personagens.
E gosto quando fala dos seus livros e nos explica o processo, quando nos faz pensar sobre a escrita, sobre o escrever, sobre a dependência da solidão durante a criação.
Há no João Tordo uma suspeita de inferno. Um ruído qualquer que antecipamos sem ter qualquer base para o anunciar, talvez uma melancolia, não sei se uma tristeza.
Tudo ferramentas úteis para um criador, não há boa literatura sem escritores comprometidos com a inquietude, com a dúvida, com as sombras.
2.
Quando leio o João – nos romances, mas também nas crónicas e até nos ensaios – há uma solidão que sempre associei à ausência de Hugo.
Um vazio certamente marcante. Hugo era o irmão gémeo, um gémeo idêntico, um irmão que cresceria igual a se não tivesse morrido no parto.
João e Joana nasceram.
Faltou Hugo sobreviver numa gravidez de trigémeos de Isabel Branco, a mãe dos três e… já agora… a mulher com mais estilo que vi em toda a minha vida.
3.
Hugo faltou aos pais e aos dois irmãos gémeos, mas é possível que a marca na vida de João Tordo, o seu irmão idêntico, tenha sido ainda mais forte ou, pelo menos, mais visível.
Vemo-lo na eterna procura das suas personagens.
Na urgência de identificação.
Na solidão a que está (felizmente) condenado.
O que teria acontecido se Hugo tivesse nascido? Teria sido possível a João encontrar a solidão de que precisava? Teria sido ele escritor sem ter a necessidade de procurar?
E se tivesse sido o Hugo a nascer e não ele? Quantas vezes se deve ter questionado?
4.
João é um excelente escritor.
Tem uma carreira sólida, prémios, público.
É musical nos seus livros, procura uma harmonia, um tempo perdido, novas perguntas.
Ele é a sua obra.
Lembra-me Leonard, personagem de Christopher Nolan em Memento – um homem que procura sem saber onde encontrar por ter perdido a memória. Desenha por isso no seu corpo as pistas que vai descobrindo nos dias para que nunca se esqueça do ponto em que ficou.
Quem sabe se os livros de João Tordo o podem levar ao irmão que nunca conheceu?
Texto e programa de Luís Osório
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