1.
Há dois anos, mais coisa menos coisa, decidi aceitar o desafio de subir a um palco.
Não era linear, mas o meu editor, Rui Couceiro, convenceu-me num jantar pela noite dentro no coração da cidade do Porto.
Por que não tentar transformar o livro Ficheiros Secretos num monólogo?
2.
Assim foi.
E já me parece distante o dia em que fiz o primeiro espetáculo no Recreios da Amadora.
Depois disso quase trinta datas, quase trinta teatros, quase vinte mil pessoas.
Esgotei a Casa da Música e o Tivoli.
Estive em lugares míticos como o Theatro Circo, o Pax Julia, o Teatro Viriato ou o Garcia de Resende.
E na próxima sexta-feira estarei no mítico Olga Cadaval, em Sintra. Quase de certeza a última data numa sala com 1000 lugares.
3.
Não te quero falar das vitórias, mas daquilo que não imaginas – daquilo que eu não imaginava.
Da solidão do camarim que os atores falam sem que nós possamos entender do que falam.
Do momento em que todos vão jantar e eu fico sozinho, completamente sozinho, num lugar com espelhos, cabides, ferro de engomar e uma tábua.
Talvez não acredites, mas é um momento transcendente. Não ainda de nervosismo, o nervosismo só chega com o regresso das pessoas, com a maquilhagem, com o rumor da entrada do público, com a produtora a avisar que faltam apenas uns minutos para me virem buscar.
4.
Não é esse o momento que gostaria que conhecesses.
É do instante mágico em que fico sozinho num camarim onde o silêncio me traz palavras ao ouvido, palavras que só eu escuto – dos que me morreram, do que perdi e ganhei, do que tenho à frente, dos amigos a quem não telefono ou dos que já não sei o número.
No camarim passa-me tudo pela cabeça.
Do texto que não me consigo lembrar, da possibilidade de me estatelar sem rede, de uma oração que me fica pela metade, da barriga a dar voltas, de uma sede que não posso matar pelo medo de interromper o espetáculo a meio.
5.
Penso nos meus filhos e na Ana.
Penso que não lhes posso falhar, penso no regresso ao hotel quando esticar as pernas me parece a sétima maravilha do mundo, penso na sequência final em que canto uma canção, a que cantava à avó Joaquina para lhe espantar a morte.
Penso nos meus amigos maiores, no Nuno, no Diogo, no Miguel. Nas pessoas que amei e nas que não tratei como mereciam, penso nas séries que estou a ver e nos filmes que não vi, penso que tenho de escrever um romance ou emagrecer ou fazer um check up.
E antes das pessoas chegarem, antes de se quebrar o silêncio, falo com a minha mãe e as avós.
Digo-lhes qualquer coisa numa língua que não conheço.
Só a seguir a tudo isto chega o nervosismo que tento resolver com a voz de Brel a dizer-me que em Amesterdão há marinheiros que cantam enquanto mastigam o destino.
Texto e programa de Luís Osório
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