1.
Não sou um purista nem faço julgamentos de valor.
Além do mais desconfio metodicamente dos que se autointitulam “boas pessoas” e ainda mais dos “perfeitinhos” que tresandam a tédio e contradições.
Tudo isto para te falar da “hora do engate”.
Sabemos da moda espanhola agora exportada para Portugal – entre as sete da tarde e as oito da noite, há homens e mulheres à procura de par numa cadeia de supermercados.
Basta pôr um ananás ao contrário no carrinho e ir para o corredor dos vinhos. Se virmos alguém na mesma condição é um sinal de que a pessoa deseja o que nós desejamos. O passo a seguir é fazer um carrinho tocar no outro e esperar a reação.
2.
Repara, não me estou a excluir deste novo filme humano.
Quando ouvi a notícia da morte do ator que ofereceu uma vida a Tony Soprano vieram-me as lágrimas aos olhos. Fiquei abalado como se tivesse morrido um amigo de carne e osso – tenho a certeza absoluta de que a notícia da partida de um vizinho do prédio onde moro não me abalaria metade.
Deixámos de ter vizinhos como antigamente.
Também deixámos de estar uns com os outros como antigamente.
Passámos a estar mais sozinhos – apesar de acompanhados. Mais entretidos num mundo virtual em que tudo nos é dado à boca: vitórias imaginárias, relações sexuais à distância de um clique, notícias feitas à medida que nos alimentam a ignorância.
3.
A maioria dos adolescentes lê os resumos dos livros, apanha pokémons e vai comer Ramen como o seu herói Naruto.
Estamos viciados nas redes sociais que foram feitas para que todas as idades estejam entretidas.
Tudo é irrealidade.
Tudo é uma série em que cada um pode ser finalmente personagem principal, em que cada um está nas suas “cenas”, em que cada um fotografa a comida antes de comer, a bebida antes de beber, o primeiro cocózinho do bebé, o primeiro beijo, a primeira vez, o primeiro orgasmo, até a morte.
As coisas só são importantes se puderem ser partilhadas, se puderem ser gostadas, se os nossos seguidores se multiplicarem.
Só existimos se formos partilhados.
4.
Passámos a estar entretidos num jogo que é a nova vida.
Não vai melhorar.
Na verdade, irá piorar. Não tarda estarão robots à venda com quem poderemos ter uma relação para a vida – se pudermos escolher uma ou um robot com o perfil físico e psicológico que desejarmos, quantos optarão pela chatice de uma vida em comum com quem se desequilibra e envelhece?
5.
A “hora do engate” é apenas mais um episódio do martírio de uma vida que está a morrer como nós a conhecíamos.
Um ananás ao contrário e uma garrafa de vinho num supermercado espanhol que nos convence no Tik Tok que devemos acreditar no destino, que devemos deixar fluir, que não devemos carregar o peso do mundo e da miséria dos que nos governam, dos que nos levam para guerras (também virtuais aos nossos olhos).
Ser livre como um passarinho para poder jogar.
Não faço julgamentos de valor, também jogo.
Mas convém termos a consciência de que estamos a entrar num território em que, julgando ser livres, nos estamos a aprisionar como um ananás de cabeça para baixo num corredor de vinhos.
É triste e deprimente.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.