1.
No Serviço Nacional de Saúde, mas também nos hospitais privados, há um grupo de gente que faz o trabalho sujo.
São eles, e maioritariamente elas, que realizam as tarefas mais duras e difíceis.
Mudam as camas.
Limpam o sangue, a urina e as fezes.
Transportam pessoas de um lado para o outro.
Transportam mortos para a morgue ou para o frigorífico.
Os auxiliares de ação médica são preciosos nos hospitais.
E cruelmente invisíveis.
Mais do que os médicos ou enfermeiros são eles que mais acompanham os acamados no seu desespero ou na sua esperança.
2.
Transportam a roupa.
Dão a sopa à boca.
Moralizam os moribundos.
Ligam e desligam a televisão, chamam os enfermeiros ou os médicos.
Durante a pandemia foram mais os auxiliares infetados do que médicos ou enfermeiros – se o hospital fosse uma guerra eles seriam a carne para canhão, os que na primeira linha dão corpo às balas que matam.
3.
E são tal maltratados, tão esquecidos, tão ostracizados.
Em 2008, perderam quase tudo o que tinham, a começar pela dignidade de serem considerados profissionais de saúde. Ficaram num limbo.
O João Fael era um miúdo quando tal aconteceu.
Trabalhava desde os 16 anos, sabia o que era a vida.
Viera de Castelo Branco e carregava em Lisboa o objetivo de construir uma carreira e uma vida o mais digna possível.
Estava no Santa Maria e fazia umas horas no Hospital da Luz. De um dia para o outro o estatuto que julgara ter deixara de existir, passara a cumprir um trabalho que não era considerado enquanto carreira.
4.
João falou com este mundo e o outro.
Bateu mil vezes com a cabeça na parede. Os seus colegas não estavam conscientes nem sequer percebiam o que estava em
causa, o importante era receberem o seu salário mínimo e não fazer ondas.
O João Fael não desistiu de fazer ondas.
Foi ameaçado várias vezes – que lhe cortavam as pernas, que deixaria de ter lugar em qualquer hospital, que isto e aquilo, mas ele prosseguiu sempre.
5.
Esta é a extraordinária história de um homem que não se vergou.
Um homem que diz orgulhoso ser o que é, um auxiliar de ação médica, um profissional de saúde.
Um homem que lutou para que pessoas como ele, a maior parte que levaram porrada a vida toda, tivessem um estatuto e uma dignidade.
Quase vinte anos na primeira linha.
A chatear os poderes, a chatear os jornalistas, a levar com a porta na cara a maior parte das vezes, a recolher assinaturas para petições, a recolher apoio para fundar um sindicato, uma associação ou para juntar gente num congresso que aconteceu mesmo na Covilhã, 400 auxiliares de ação médica que se mobilizaram para o futuro, o seu exército feito de gente que se recusa a ser mais carne para canhão.
6.
Esta é a história de um homem que, quase sozinho, conseguiu que a sua gente fosse reconhecida, que a sua carreira fosse recuperada.
Um trabalho ainda a meio, mas que não estaria a meio se ele não existisse.
Chama-se João Fael e não parece ser deste tempo.
Tem um bigode de 1970 e é um herói para a sua gente.
Para a nossa gente, a que nos abraça se precisarmos de um abraço.
A que nos ouve em primeiro lugar se estivermos internados.
A que nos dá banho se não conseguirmos tomar banho sozinhos.
Que nos limpa sem nos humilhar.
Que nos socorre se apenas precisarmos de alguém que nos oiça.
Este Postal é para o João, o homem que se cumpriu oferecendo um futuro aos mais invisíveis entre os invisíveis.
Texto e programa de Luís Osório
Ouça o “Postal do Dia” na Antena 1, de segunda a sexta-feira, pelas 18h50. Disponível posteriormente em Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts e RTP Play.