1.
Fiz ontem 53 anos.
Não sei como o tempo nos acontece.
De repente, num repente, o corpo torna-se outro, os ritmos alteram-se, o mundo passa a ter fronteiras e os textos que escrevemos dentro da nossa cabeça já trazem os parágrafos.
Recordo-me do tempo em que era imortal.
Sabia da morte, mas dançava com ela por me parecer pouco ameaçadora – acho que me compreendes bem, aposto que fizeste o mesmo.
2.
Mas as rugas e o que ganhamos não nos garantem sabedoria.
Continuamos até ao fim a ser chocalhados pela pedra dura – logo que achamos estar preparados, a vida encarrega-se de nos dizer que a prudência e humildade são palavras que devemos ter à mão.
Deixa-me contar-te o que me aconteceu na semana passada.
A Direção Geral de Saúde pediu-me um depoimento de um minuto para apresentar num congresso que assinala os 40 anos de combate à SIDA.
Claro que sim, claro que faria o depoimento.
Julgo estar confortável no improviso, penso no que quero dizer e digo.
E julguei também estar resolvido sobre o meu pai e a sua doença, sobre o sofrimento, sobre os mais de trinta internamentos, os comas, as toxoplasmoses.
Também sobre o que teve de ouvir quando deu a cara, o que perdeu, o que teve de recuperar, sobre a angústia da minha avó Alice.
Sobre as nossas conversas, sobre o que senti quando era adolescente e depois jovem adulto e depois adulto.
Sobre os jantares em silêncio com o meu pai.
Sobre a vergonha que me subiu à cabeça quando um colega de liceu me perguntou o que o meu pai tinha. Sobre a vergonha que senti de ter tido vergonha do homem mais corajoso que conheci.
Sobre a incompreensão e a redenção.
3.
Estava mais do que apaziguado.
E era bom no improviso.
Não poderia correr mal.
Fiz ontem 53 anos, deixei de ser imortal.
Mas continuo a não saber a razão para que as coisas aconteçam de uma maneira e não de outra.
Demorei mais de uma hora e meia para gravar um minuto.
E só me sentei para gravar esse minuto mais de um mês depois do pedido.
Fiz 52 takes.
Desesperei.
E no final, depois de gravado, com todas as hesitações, falhas e recomeços, saí de casa e dei duas voltas ao quarteirão a pensar no que, afinal, não tenho resolvido.
No que, afinal, carrego nos meus escombros.
Texto e programa de Luís Osório
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