1.
Cerca de 16 mil pessoas assinaram uma petição para que os supermercados deixem de funcionar aos domingos.
O assunto será agora discutido no parlamento e espera-se alguma polémica e divisão entre os deputados.
Nunca pensei… confesso… que o assunto tornasse a ser discutido. A lei mudou há pouco mais de dez anos e nunca mais o tema entrou nas nossas preocupações.
Até hoje.
2.
É um tema que me irrita profundamente.
Não por existirem pessoas que o defendem com argumentos que devem ser discutidos – como o direito ao descanso de quem trabalha. Mas por que a maioria o faz com uma enorme superioridade moral ou de classe.
Já ouvi as coisas mais bizarras.
Que os pobrezinhos têm de ser protegidos de si próprios. Afinal, pouco há de tão deprimente do que ver magotes de famílias vestidas de fato de treino a fazerem as suas comprinhas de domingo.
Para esses paladinos da decência se os supermercados estivessem fechados ao sétimo dia as igrejas voltariam a encher-se e as famílias pobres e remediadas melhorariam a sua saúde mental fazendo passeios, conversando e convivendo sem a depressão de se fecharem em templos do consumo que só lhes fazem mal à cabeça.
3.
É absurda a ideia de que sabemos o que é bom para os outros, sobretudo se forem pobres e pouco instruídos. Que devemos zelar pela sua saúde mental, pela sua família e pelo seu bem-estar.
É mesmo não ter noção da forma como as pessoas vivem, da dureza do trabalho durante toda a semana e do que representa para eles, com pouco dinheiro no bolso, o supermercado estar aberto ao domingo. É rebentarem com o que resta de alguma rotina familiar.
4.
Mas não quero reduzir a minha incredulidade aos que pouco têm. Para a classe média, onde me incluo, com filhos e pressão durante toda a semana, ir ao supermercado no domingo é importante para não retirar ainda mais tempo ao pouco tempo que temos.
É limitar-me na minha liberdade de poder escolher quando vou.
Há outros três argumentos, talvez mais sérios embora tão absurdos como os outros.
A de que o comércio local tem de ser protegido, como se o comércio local estivesse aberto ao domingo. O que acontecerá é que a concentração de segunda a sábado nas grandes superfícies irá diminuir ainda mais a clientela nas pequenas lojas.
A de os trabalhadores precisarem de ser protegidos, como se as empresas de distribuição não extinguissem imediatamente milhares de postos de trabalho se funcionassem sem o seu dia mais forte.
A de os supermercados ao domingo retirarem pessoas do culto religioso, de um descanso consagrado e de algumas horas sem a pressão do consumo, como se o vento do tempo pudesse ser travado com as mãos e uma coisa tivesse a ver com a outra.
Infelizmente não tem.
Há dez anos, quando não havia supermercados ao domingo, as igrejas estavam ainda mais vazias do que hoje.
Imaginar que o materialismo e a dependência do consumo diminuirão com a proibição do comércio aos domingos, é de uma profunda ingenuidade ou de uma arrogância mórmon que habitualmente é defendida pelos que gastam dinheiro a sério em casas, carros, viagens e lojas de luxo que estão fechadas ao domingo para que quem consome a sério possa descansar ao domingo em família.
Texto e programa de Luís Osório
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