1.
Há muitas formas de explicar o sucesso dos Xutos e Pontapés.
A força das canções.
A voz de Tim vinda do fundo de lugares sem futuro.
O carisma de Zé Pedro.
A energia de Kalú ou o virtuosismo de João Cabeleira.
A capacidade de serem transversais a várias gerações.
O serem nossos, tipos normais que bebem uns copos com os fãs e envelhecem connosco, sem problemas com isso, sem dramas.
2.
Só que nenhuma dessas razões explica os 45 anos de sucesso.
Simplesmente há pessoas, ideias e projetos que ocupam um lugar que não existia antes de ser ocupado.
Oferecem ao mundo, aos países, às cidades ou ao prédio onde moram alguma coisa necessária e quase nunca previsível.
Quando os Xutos surgiram no final da década de 1970 o país ainda era o do nacional cançonetismo e a música de intervenção agradecia os cravos de Abril com promessas de uma revolução que se devia cumprir apenas com a voz dos monstros sagrados.
3.
Vi-os no Rock Rendez Vous e foi a visão de um país que eu não conhecia.
Fiquei sem palavras com as palavras de “Remar Remar” ou o “Esquadrão da Morte”.
Pessoas que não sabia que existiam começaram a segui-los, pessoas que estavam escondidas em bairros operários ou noites clandestinas. Os miúdos que os seguiam eram das margens da grande cidade, adolescentes ou jovens adultos sem esperança de serem visíveis, miúdos de Almada, do Barreiro, do Seixal. E depois dos arredores do Porto e de Coimbra e de Setúbal.
Filhos de trabalhadores das fábricas que se identificavam com a voz de Tim que nos cantava uma outra revolução e de um outro povo que parecia não contar.
4.
Depois foi tudo o resto.
O sucesso.
A esperança para os desvalidos do sistema, para os vencidos, para os que se deixavam agarrar pelo vício, pelo cavalo, pela cocaína.
Eles estavam ali e eram rock and roll.
O Zé Pedro era o Sid Vicious, o Cabeleira, o Mick Jones, berrávamos gritos mudos, procurávamos um sentido para a terrível falta de um sentido.
Viraram tudo do avesso.
O Zé Pedro e o seu sorriso mais a voz que resgatava miúdos que perdidos em vielas e becos.
Ele passou a ser um exemplo.
Alguém que voltou para contar a história, alguém que dizia que o caminho não era o do fim, mas o de um Sol que voltaria a brilhar para quem não desistisse.
Tantos deixaram de ir por aí.
5.
E mais e muito mais.
A partir de certa altura começaram a ser outra coisa.
Alegria onde era sombra.
Luz onde era escuridão.
Esperança onde era condenação.
Para uns, os Xutos venderam-se ao sucesso.
Para outros, continuaram a ser o que sempre foram, os maiores, os que sempre estiveram no mesmo sítio a beber umas cervejas com a malta, a beberem umas cervejas com um país refém de uma liberdade ainda por viver.
Muitos parabéns ao Xutos.
Pelos seus 45 anos de vida.
Pelo país que nos ajudaram a construir.
Texto e programa de Luís Osório
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