1.
Se Deus existe, e eu acredito que sim, a Sara ainda será Sara até que os seus dois pequeninos precisem dela.
A Maria e o João certamente que não sabem o que pensar.
De repente, num repente, a mãe partiu numa viagem sem deixar um número de telefone, uma morada, nada. De um dia para o outro o mundo pareceu poder explodir, num dia a família celebrava um golo do João e a primeira chamada à seleção nacional e no outro chegava um diagnóstico de morte.
Foi há poucos meses, um cancro raro e tudo tão rápido.
A esperança de conseguir curar-se, um internamento por causa de uma febre, uma infeção generalizada, a operação urgente, a morte.
2.
O João entrou em campo com o Vizela com os seus olhos de luz. O seu sorriso largo. A sua genialidade feliz.
Não sabia que a situação piorara.
Talvez soubesse que a mãe tinha febre, nada de especial.
O treinador tirou-o a meio da segunda parte. No banco do Benfica já havia quem soubesse. A trágica notícia foi-lhe dada no final, num balneário em que todos choraram abraçados numa roda.
3.
Mas se Deus existe, e eu acredito que sim, a Sara anda por aqui.
Passou pela sua escola secundária em Tavira, esvaziou mentalmente o seu cacifo na sala de professores de Educação Física, viu os seus alunos presentes e do passado, as brincadeiras no recreio, os meninos a quererem saber mais do filho João, a perguntarem à professora se ele não podia visitá-los e jogar à bola.
Se E’le existe, Sara revisitou tantos momentos.
Dos alunos, da infância em Tavira quando as velhotas brincavam com o seu apelido, o apelido da sua mãe, Mártires não era apelido de gente, até parecia puxar o azar.
Só que Sara não pensava em fatalismos, era positiva, os filhos herdaram o seu sorriso e os tais olhos iluminados.
Casou apaixonada, manteve-se assim e teve de gerir a ausência do seu João. Era tão pequenino, mas tão talentoso a jogar futebol, o marido convenceu-a ao impensável, o miúdo não podia perder a oportunidade.
Tinha 12 anos e um convite para sair de casa. E ele, ainda criança, passou a morar no Seixal com outros miúdos com tantos sonhos quanto ele.
4.
Se Deus existe, e eu acredito que sim, Sara voltou aos dias em que punha Vic no peito do João e da Maria, ao primeiro dia que os levou à escola, à noite em que o João se aninhou na sua cama para lhe perguntar se ela o deixava ir, se a mãe o deixasse ir ele prometia portar-se sempre bem.
O que João não sabe é que ela chorou a noite toda.
Convulsivamente, como se as lágrimas nunca mais pudessem ser travadas.
As mesmas lágrimas que o João chora pela sua partida sem aviso. As mesmas que chora por cada memória, por cada abraço, por cada saudade, por cada telefonema antes de dormir – para onde poderá ligar agora quando o sono não chegar?
O que fará com o número de telefone dela, o número que diz “Mãe”, o que fará amanhã e depois e depois, apaga o número, telefona como se fosse possível o milagre?
A Sara partiu jovem.
Tinha 50 anos.
O João e a Maria terão uma mãe jovem para sempre.
Uma mãe que os abraçará todos os dias mesmo que eles não o sintam, mesmo que apenas sintam uma pequena corrente de ar.
Eu acredito que sim.
Texto e programa de Luís Osório
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