1.
No princípio da década de 1950, antes de Humberto Delgado ter desafiado Salazar, e antes do início de uma guerra colonial em que o Estado Novo decidiu virar as costas ao curso da história, uma menina de boas famílias, filha de gente com terra e com um bom berço, bateu o pé à família, aos bons costumes e a todos os seus dogmas de classe.
A menina tinha pouco mais de vinte anos e chamava-se Helena Sacadura Cabral.
Formara-se em Economia no ISEG e com notas que foram comentadas. Ganhara o prémio para a melhor aluna do curso…
… uma menina que no primeiro dia fora gozada pelos colegas por usar soquetes como se fosse caloira do liceu e que saíra abraçada por todos, quatro anos depois, como um exemplo de uma mulher de cabeça aberta, heterodoxa, livre.
2.
Mas desculpa-me o atropelo, dizia-te que ela desafiara o seu mundo quando, de casamento marcado, a dez dias da cerimónia, com casa posta, e centenas de convidados com convite na mão, decidiu não casar.
Conhecera o noivo na faculdade.
Fizeram o mesmo curso e o João, assim se chamava o rapaz, também era de boas famílias. Uma união que, como planeado desde que o tempo era tempo, tinha tudo para correr como era suposto.
3.
Não aconteceu.
Faltavam dez dias, ou coisa parecida, para o casamento. E tudo foi cancelado por causa de uma cómoda de pau santo.
Helena e João tinham arrendado uma casa no centro de Lisboa e estavam a decorá-la.
Numa manhã de calor dois homens carregaram ao lombo a cómoda que pertencia à família do João que, zeloso do seu património, mandou que a mobília ficasse por baixo de uma janela.
Helena não concordou:
“João, não faz sentido a cómoda ficar nessa janela. É antiga e a luz do Sol vai estragá-la, não faz sentido. Porque não a metes num lugar mais protegido?”.
Não foi o que o João respondeu, mas a maneira como o fez:
“Vai para ali porque eu quero!”.
4.
A Helena achou que era um sinal.
Se deixasse passar aquilo, a sua vida seria um verdadeiro inferno.
Não nascera para ser submissa e o modo desabrido como o seu noivo ordenara que se calasse, tornou as coisas absolutamente claras.
Falou com a mãe Ivone, com quem sempre contou em todos os momentos de aflição, e desapareceu da circulação durante uns meses.
Os suficientes para que a coisa acalmasse.
João, que haveria de ter uma carreira de sucesso, chegando até a governador do Banco de Portugal, ficou sem noiva a dez dias do casamento.
E é bem capaz de lhe ter ficado para a vida.
Já Helena casaria um tempo mais tarde com um arquiteto opositor ao regime, um Nuno Portas que foi pai dos seus únicos dois filhos, Miguel e Paulo.
Há coisas na vida que não se explicam, como esta.
Se não fosse uma cómoda de pau santo, Paulo Portas e Miguel Portas nunca teriam nascido.
Sem a ignomínia de Helena ter ido contra os dogmas familiares, e o conservadorismo do tempo, jamais o país teria conhecido dois irmãos que dividiram as águas à direita e à esquerda.
Texto e programa de Luís Osório
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