A obra de Wim Wenders está profundamente ligada às suas raízes alemãs, ao mesmo tempo que deambula por outras geografias e culturas: os EUA, Cuba e também Portugal fazem parte da sua riquíssima e contrastada filmografia.
A exibição simultânea dos mais recentes filmes de Wim Wenders — “Dias Perfeitos” e “Anselm – O Som do Tempo” — pode servir de esclarecedora porta de entrada no universo do cineasta alemão (nascido a 14 de agosto de 1945, em Dusseldorf). Aqui temos, de facto, duas linhas narrativas essenciais para compreendermos a riqueza e a agilidade criativa daquele que, na transição das décadas de 60/70, começou por ser um nome fulcral da renovação do cinema feito na Alemanha: primeiro, o retrato de uma personagem inesperada (empregado de limpeza das casas de banho públicas de Tóquio) em tom de delicada parábola poética; depois, uma fascinante “reportagem” sobre a obra do pintor e escultor Anselm Kiefer, para mais executada através de uma brilhante utilização das imagens em 3D.
Vale a pena sublinhar a importância destas experiências documentais na trajectória de Wenders, porventura a vertente menos conhecida do grande público. Talvez com uma excepção: “Buena Vista Social Club” (1999), de uma só vez um retrato e uma homenagem, deambulando pelas ruas de Havana para descobrir e escutar nomes lendários da música de Cuba, incluindo Compay Segundo e Ibrahim Ferrer, reunidos com a cumplicidade do norte-americano Ry Cooder.
Importa também não esquecer que Cooder está ligado ao filme que, de forma decisiva, projectou o nome de Wenders para lá dos circuitos de um certo “cinema de autor” de raiz europeia. Foi ele que compôs a inesquecível banda sonora de “Paris, Texas”, título consagrado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1984 (com o actor inglês Dirk Bogarde a presidir ao júri oficial).
Mais do que isso: “Paris, Texas” é um símbolo primordial da relação de Wenders com a cultura literária e cinematográfica “made in USA”, na altura já bem patente em “O Amigo Americano” (1977), adaptando um romance de Patricia Highsmith e contando no seu elenco com Nicholas Ray, o cineasta que filmou James Dean em “Fúria de Viver” (1955). Aliás, em “Lightning Over Water” (1980), outro documentário, pontuado por muitos elementos ficcionais, Wenders viria a filmar os dias finais de Ray (falecido em 1979), num diálogo exemplar entre discípulo e mestre.
Escusado será dizer que nada disto exclui (de alguma maneira, reforça) a importância dos olhares de Wenders sobre o seu próprio país, em particular antes da Queda do Muro de Berlim, em 1989. Bastará recordarmos os casos exemplares de “Ao Correr do Tempo” (1976), uma desencantada deambulação pelas zonas de fronteira entre as duas Alemanhas e, claro, “As Asas do Desejo” (1987), outro dos seus filmes mais populares, colocando em cena duas figuras angelicais que, num misto de tristeza e esperança, contemplam a paisagem de Berlim, ainda dividida pelo Muro — sem esquecer a presença das canções de Nick Cave, outro dos cúmplices criativos de Wenders.
Neste permanente ziguezague entre a Alemanha e diferentes geografias e culturas, não podemos esquecer a ligação de Wenders com Portugal, a começar pela rodagem, na região de Sintra, de “O Estado das Coisas”, uma crónica amarga e doce sobre as atribulações de uma equipa de filmagens com sérios problemas financeiros para concluir o seu trabalho — arrebataria o Leão de Ouro na edição de 1982 do Festival de Veneza.
Wenders esteve também em Portugal para filmar (no interior do desmantelado Cinema Eden, em Lisboa!) uma cena de “Até ao Fim do Mundo” (1991), vindo a realizar “Viagem a Lisboa” (1994), nova reflexão sobre os modos de fazer cinema, com a participação dos Madredeus. Neste filme, pôde contar com a participação de Manoel de Oliveira, numa cena tão breve quanto irresistível, a imitar Charlie Chaplin.
Texto de João Lopes
No novo episódio de “Duas ou Três Coisas”, João Lopes e Nuno Galopim propõem um olhar panorâmico sobre o cinema de Wim Wenders. Para ouvir depois das notícias das 23h, esta sexta-feira na Antena 1.